Artigos

Bodes expiatórios

Nosso colunista, Luis Nakajo, continua nossa área de Crônicas com um texto sobre a polêmica causada pela Igreja desde o início da obra de Harry Potter, que se acentuou mais uma vez com algumas entrevistas da autora sobre Relíquias da Morte.

Além disso, cita outros exemplos de grandes gênios da literatura e do cinema que também foram incompreendidos em sua arte pelos religiosos.

Você pode conferir a coluna completa aqui.

Deixe seu comentário e feedback, é importante para nós e para o autor. Se quiser, sinta-se livre para comentar a coluna em nosso Fórum.

Bodes expiatórios
Os religiosos atacam não apenas tudo aquilo que os contradiga –eles atacam o direito humano de escolha, de individualidade

Por Luis Nakajo

Religiosos extremistas costumam freqüentar o noticiário, não só ao explodir dois aviões em torres gêmeas, mas também ao bombardear a base da sociedade democrática: o direito de escolha individual. Geralmente esses senhores alertam a sociedade contra determinadas obras que consideram “perigosas”, moralmente negativas ou instigadoras de pensamento deturpado.

Além de não terem senso de humor, eles costumam franzir (e muito) o sobrolho quando algum livrinho, algum filminho vem questionar um dogma ou lançar um pouco de luz sobre as motivações das rígidas instituições religiosas. Ou quando surge alguma sátira ou crítica irônica.

BÚSSOLA DA DISCÓRDIA
Nem chegou aos cinemas e o filme A Bússola de Ouro desperta reações, diria eu, extremistas. É interessante ver a freqüência com que isso ocorre fora do círculo de Harry Potter. Algo que ocorre há muito no mundo potteriano é tradição da hipersensível Madre Igreja. Como era de se esperar, a gritaria envolveu protestos, pedidos para que pais não deixassem seus filhos chegar perto do filme, tentativas de impedir seu lançamento, boicotes… Só não foi banido de bibliotecas porque é filme.

No que toca à principal envolvida, a Igreja Católica, era já algo altamente previsível. Mesmo sem considerar as bruxas queimadas nas fogueiras e a complacência –mesmo tácita aceitação- ante o holocausto nazista, era previsível o barulho que os senhores cardeais criariam em torno de um filme baseado numa obra, para dizer em sua linguagem, “herege”.

Ao pensarmos nos religiosos clássicos, não faz sentido que, em vez de criticar tudo o que venha contra seus credos, como homens esclarecidos, eles ao menos esperem para ler o livro ou ver o conteúdo do tal filme –que dizem ter sido consideravelmente atenuado no ponto anti-religião. Desses religiosos – de todas as posições hierárquicas-, podemos esperar apenas a ignara e mesquinha soberba da verdade (que eles grafam com V maiúsculo). Nada de sensatez da parte deles. Tudo é reduzido à categoria de bom ou mau.

Os militantes cristãos americanos, num país em que cristianismo e nanismo intelectual são quase sinônimos, alegam que o filme, mesmo que atenuado, vai introduzir os jovens ao ateísmo, ao incentivar a compra do satânico livro homônimo, primeira parte de uma trilogia -escrita por um ateu- em que a morte de Deus é encenada de forma tragicômica.

Mesmo considerando que “trazer pessoas ao ateísmo” seja algo ruim, não consigo chegar a outra conclusão: medo. Há tanto medo assim de que, com um simples filme e/ou livro, pessoas sejam atraídas ao ateísmo?

A literatura não muda nada. Ela apenas propicia a transformação dos sujeitos interessados, abertos. É da liberdade individual escolher. Escolher refutar ou acolher. E, mesmo assim, a leitura de um livro, como bem sabemos, pode ser feita em diversas camadas. Pode envolver diversos pontos de interesse, conscientes ou não.

O CRISTO HEREGE
“Obras satânicas”, como a de Salman Rushdie, Carl Sagan e o controverso Harry Potter de J. K. Rowling, são menos deturpadoras do que pintam. Bode expiatório: vejo qualquer uma dessas obras como um tremendo bode expiatório –um cristo crucificado em nome de todos os pecados dos homens. Sintomaticamente, os pecados envolvidos seriam os que mostram o quanto a família e o indivíduo se encontram atualmente: superficialidade das relações pai-filho e, digamos teologicamente, a falta de fé.

Superficialidade das relações familiares porque temem os católicos que uma obra de ficção influencie seus filhos mais do que os próprios pais baratas-de-sacristia, com quem, em teoria, convivem por bem mais do que as 2 horas de um filme e as 40 horas de uma leitura. E, claro, falta de fé, simplesmente porque a sua escassez leva os homens ao ponto de acreditar que, só porque eles temem não resistir à influência de um filme pecaminoso, todas as outras pessoas também cairão nesse erro quando expostas à “tentação”.

Se não é falta de fé, é, então, mais um pecadilho grave de soberba: acreditar que os outros –e aí entra o caráter proselitista e coercitivo da religião-, as “ovelhas desgarradas”, precisam necessariamente passar pelo ferro e fogo para entrarem no curral do Senhor, Alá ou qualquer outro deus –para entenderem onde está a “Verdade”, precisam ser isoladas dos estímulos ao mau caminho, porque são burras, burras (como atesta a sua condição de não-religiosas). Irônico notar que são muito mais influenciáveis as ovelhas cristãs, coisa que não percebem, óbvio. Ou notam e são duplamente burras por seu comodismo.

ELEMENTOS CRISTÃOS
Como veremos em colunas posteriores, os elementos da doutrina cristã embutidas em Harry Potter são intensos. Mas, antes que saiam dizendo que Harry Potter é cristão ou católico, é melhor deixar bem claro que pouquíssima coisa no Ocidente não tem o dedinho cultural da “religião de Cristo”. O modo como nos vestimos, o tabu com relação à inveja e infinitos outros valores seus permeiam nossa vidinha.

O que não significa que nossa vida seja uma catequese.

O significado dos livros de Rowling gira mais em torno de elementos da rica e heterogênea cultura cristã, que é um enorme caldeirão de culturas. A cada conversão de rei bárbaro que realizava, a religião absorvia vários costumes locais para facilitar a catequese –Saturday, Monday, Wednesday são versões “domesticadas” do culto aos astros. A representação de Maria com seu filho no colo é igualzinha à imagem de Ísis e Osíris do Antigo Egito.

Extraídas da cultura cristã, há situações inúmeras. O que não vem junto, graças a Deus, é o viés e a interpretação restrita que essas histórias e elementos têm para a doutrina cristã-católica. Os livros não aprovam a queima das bruxas –na verdade, eles zombam dessa atividade -no começo d’O Prisioneiro de Azkaban, principalmente. O Frade de Lufa-Lufa é representado com certa ironia –ele com certeza é o fantasma mais calmo, mas o menos prático, como o é o Barão Sangrento, o único com algum controle sobre Pirraça.

VOZ ROUCA
É interessante notar os desesperados movimentos eclesiásticos pela manutenção do poder outrora brandido. A Igreja não detém mais o monopólio da voz da verdade.

Graças a Deus!

Numa sociedade que se pretende democrática, como a nossa, a verdade é da conta de cada um –e cabe apenas a cada um, como indivíduo e não como um sujeito apagado num corpus misticus, a tarefa de definir seus valores, suas preferências –e os filmes a que vai assistir no fim do ano. Cheia de falhas, a Igreja tenta remendar sua doutrina autoritária para aderir a essas novas liberdades modernas –mas não consegue seguir muito bem os conceitos de dignidade humana ao desaconselhar e, em alguns casos, ditar o que a sociedade inteira deve fazer, como no caso da eutanásia e do não-uso de preservativos em localidades de mentalidade mais estreita. Mais amplamente, a Sharia islâmica também não é lá o código mais respeitador da dignidade humana –principalmente da das mulheres.

O tiro, claro, pode muito bem sair pela culatra. E não digo apenas com relação à bilheteria de A Bússola de Ouro, ao sucesso de Harry Potter ou de O Código Da Vinci. Digo em relação ao catolicismo/religião e sua imagem junto dos jovens com tutano. Talvez menos pelas obras que lêem -e mais por verem o quão patéticos são os religiosos intransigentes -, daqui uns 15 anos, as crianças de hoje possam se transformar nos jovens abertos, ateus ou não, de amanhã.

Luis Nakajo é estudante “de tudo e de nada”, um humanóide.