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Academia Baboseira de Letras

É inegável que a obra de J.K. Rowling ainda é criticada e rebaixada ao nível de mera modinha por supostos entendedores da literatura mundial. Nossa incrível Bruna Moreno manifesta-se, portanto, com um interessante toque humorístico e uma dose saudável de ironia inteligente. Bruna mostra o que uma pottermaníaca estudante de Letras tem a dizer aos que tratam a saga Potter como fracasso literário por sua repercussão irrefreável. Leia a coluna completa aqui e compartilhe o gostinho de ver a crítica prepotente à Harry Potter ser facilmente desmontada por quem sabe o que fala.

Por Bruna Moreno

A hora da janta da universidade possivelmente é um dos momentos mais esperados: é o intervalo merecido entre a maratona de aulas da tarde e as da noite, a oportunidade de botar as fofocas em dia e trocar piscadelas por entre as mesas do restaurante. A minha história começa bem aqui, no meio da bagunça das conversas altas e de cuspes involuntários de feijão: eu e mais sete amigos, todos nós ocupando quase uma mesa inteira, rindo e conversando a respeito de (é claro!) livros. Nosso grupo era formado por aspirantes a lingüistas, literatas e educadores, não se espante. Conversa vai, conversa vem, livros vão e livros vêm, não tardamos a chegar ao assunto inevitável:

“Você já leu Harry Potter?”.

Meu amigo, o próprio autor da pergunta, respondeu de pronto: não, nunca, jamais. Essa coisa de bruxo é muito boba. É livro popular. É best-seller; não dá pra ler best-seller. O filme é pra criança, só vi o primeiro e nem quero ver o resto. Repetindo: popular. Mais uma amiga minha não demorou a concordar com a cabeça.

E lá fiquei eu, observando os reflexos da Academia.

MINHA PROFESSORA E MAIS CINCO MANDAMENTOS

“Aquela mulher deve ter ganhado seu dinheiro”, ouvi da boca de uma professora de uma disciplina equivalente a Literatura Brasileira Contemporânea ao se referir a ninguém mais, ninguém menos do que Joanne Kathleen Rowling. Na hora, a réplica ficou presa na minha garganta: “É, sim, ela só é mais rica que a rainha da Inglaterra. Só.”
Se houvesse uma bíblia única e específica para o mundo da Literatura, reconhecimento seria o primeiro e maior dos pecados capitais descritos. Nela, cinco mandamentos guiariam a vida de todo e qualquer escritor ou artista: Não terás reconhecimento por tuas obras enquanto viveres, leríamos na linha do topo; não contrairás riqueza, diria a segunda, com um pequeno adendo no rodapé para exceções como fortuna familiar, casamento contraído ou herança; não se relacionarás com quem não pertença à elite intelectual, estaria escrito na terceira; não serás referência da cultura popular, para reforçar a primeira e fechar, com letras garrafais no quinto e último preceito: merecerás a morte e o desprezo caso viole ou deseje violar qualquer um destes mandamentos.

Mozart poderia ser o mártir e o exemplo desta Bíblia. Ou Nietzsche. Ou Augusto dos Anjos. Por outro lado, grandes escritores como Jorge Luis Borges, por exemplo, já teriam alcançado seu lugar certo no inferno — assim ao menos seria o pensamento da grande massa de universitários, graduandos e principalmente pós-graduandos, estudantes de Humanas, que no começo dos anos 80 se deliciavam por apresentar estudos acerca de suas obras, e que já nos anos 90 perdiam interesse por este “autor do mainstream”.

Claro que eu mesma contradigo a brincadeira que fiz acima. Existem vários escritores, como Machado de Assis ou James Joyce, que são aclamadíssimos pela Academia atualmente ao mesmo tempo em que foram reconhecidíssimos na época em que viveram. O que eu quis realmente enfatizar são casos como o de Borges, por quem o interesse da Academia foi e vem sendo perdido aos poucos devido a uma dúzia de prêmios e reportagens de revistas de grande circulação.

Quando a minha professora demonstra nem saber o nome da escritora de maior repercussão da última década, ela marca as palavras que vão ecoar das bocas de seus alunos com uma carga negativa e preconceituosa, a mesma que ouvi de meu colega de classe: “não dá pra ler best-seller”. Ora, quer dizer que ela sair na lista de Os Dez Mais Lidos de Ficção da Veja é fundamento para deixar de se ler uma obra?

Nos Estados Unidos não é a Veja que circula, mas o pensamento da Academia não deixa de ser diferente. Lembro-me que no início do ano passado o Potterish publicou uma notícia a respeito da indignação dos alunos de Harvard por terem como oradora de formatura “aquela mulher”, a própria Rowling, quem eles nomearam como “uma personalidade da cultura pop de permanência questionável” — ou, em outras palavras, modinha. Ganhar dinheiro e ser famoso no mundo da Literatura é assim. Mas, ora, o orador da turma anterior fora aclamado e adorado, e fora ninguém mais, ninguém menos do que Bill Gates, o mesmo que ganha milhões com softwares da Microsoft, os mais usados e famosos do mundo, e o mesmo que, ham-ham (pigarro de Umbridge), nunca vi ser referido como “modinha”.

É realmente triste não poder ser reconhecido dentro da própria área de atuação. Vender garante a Gates pontos pelos especialistas de tecnologia e informática. Agora, vender, para Rowling, é uma vergonha que lhe arranca do assento do renome. Na lógica invertida do mundo da literatura, agradar a poucos é sinônimo de apreciável, enquanto que o que encanta a maioria (sinto-me obrigada a me chamar de “povão”) é senso-comum, é lixo. Para a minha professora, meu colega e todo o resto de intelectuais de nariz empinado, adoradores do Cult intragável e ininteligível, a tia Jo já tem seu lado garantido ao lado do capeta.

MEU PROFESSOR E MAIS CINCO AMIGAS

Estranhamente, no mesmo semestre em que tive aula com a dita-cuja tão mencionada, ouvi outro discurso de outro professor de outra disciplina, agora Tradução Literária. Em algumas de suas muitas divagações, a classe (ou ao menos respondo por ela em metonímia inversa) se surpreendeu com suas narrações de como ele tinha tanto ansiado pelo sétimo livro, e de como tinha discutido com uma senhora na fila do banco a respeito de Harry Potter ser ou não ser uma aversão ao cristianismo, entre outras parecidas e repetidas.

Com seu sotaque americano muito carregado, ele interrompia a aula para comentar: “Harry Potter não é uma história sobre bruxos ou sobre magia. É sobre a morte. Ela é tão presente nos livros, cada vez mais presente e mais intensa”. Eu não completava com minhas impressões, mas interiormente fazia teorias e vibrava com este gosto dele aberto tão descaradamente e sem receio de taxação. Claro que ele, como literata, tem todo o poder de opinião (nós somos apenas humanos), porém vê-lo teorizando em cima de uma “obra do mainstream” do mesmo modo que faz com D. H. Lawrence eleva os dois ao mesmo nível e dá um chute no traseiro dos cultistas.

Cada vez mais alunos passam pela graduação e pela pós, e cada vez mais monografias e defesas de teses colocam sem medo “Harry Potter” no título. O livro não é só avaliado como “fenômeno”, mas agora também como obra literária que é e como merece: representativa de uma época, suscitadora de reflexão, instrumento ideológico, evento lingüístico, objeto estético. Um texto que é capaz de comover pessoas ao redor do mundo e mover uma geração toda de volta à leitura impressa obviamente tem algo a ser estudado ou, no mínimo, respeitado. A avaliação de excelência literária dos antigos (leia-se “velhos”) da Academia aos poucos se vê obrigada a pôr os interesses culturais particulares de seus membros de lado para ceder lugar a novas mentes, renovadas e mais abertas, quando não meras repetidoras de discurso.

Não digo tudo isso somente como amante incondicional de Harry Potter, mas como ser humano questionador e cético perante as escolhas da dita “elite intelectual”, metida a do contra e que julga sem saber. Não sei se vocês concordam comigo, mas sei que pelo menos não estou sozinha: tenho mais cinco amigas comigo, aquelas outras cinco meninas da hora da janta, que junto comigo não tiveram vergonha de argumentar contra meu colega e afirmar que lêem, que assistem, e que gostam, sim!, de Harry Potter.

Bruna Moreno dispensa quaisquer feitiços protetores para encarar uma platéia anti-Rowling.