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Um mosaico de gêneros em Harry Potter

Nossa colunista Natallie Alcantara nos presenteia neste domingo com mais uma reflexão sobre Harry Potter. Você já parou para pensar na quantidade de gênereos literários que estão presentes na série?

Natallie Alcantara foi buscar uma explicação para esses gêneros em outros autores e em seu conhecimento para elaborar a coluna que nos traz hoje. Não deixe de ler e registrar sua opinião!

Por Natallie Alcantara

Muitas são as classificações narrativas nas quais os estudiosos enquadram a série Harry Potter. No entanto, empurrar os livros de J.K. Rowling para um gênero literário específico não é tarefa fácil, visto que a autora utilizou vários elementos na sua criação, elementos estes encontrados em mitologias, romances, histórias de ficção e contos de fadas. Muitas das classificações quanto ao gênero literário dependem da personificação do herói.

A jornada do herói

Joseph Campbell divide a trajetória mitológica do herói em três elementos que podem ser encontrados em todas as mitologias: partida, iniciação e retorno.

A hero ventures forth from the world of common day into a region of supernatural wonder: fabulous forces are there encountered and a decisive victory is won: the hero comes back from this mysterious adventures with the power to bestow boons on this fellow man. (CAMPBELL, p. 23)

Cada uma das categorias citadas apresenta vários “estágios”, mas dada a natureza da história do menino bruxo, Harry não passa por todos os estágios das três categorias. Serão explorados somente os estágios nos quais sua trajetória se enquadra.

1-Mundo Comum: o leitor conhece o dia-a-dia do herói. Conhecemos Harry e sua rotina na casa dos Dursley. Seu convívio com a família e alguns momentos fora dela são retratados ou mencionados.

2-Chamado à aventura: a rotina do herói é quebrada por um acontecimento inesperado. A primeira carta de Hogwarts é uma surpresa, já que Harry não tinha com quem se comunicar. Os acontecimentos subseqüentes só fazem dar mais certeza ao menino de que está acontecendo algo diferente: as corujas que tentavam entregar as cartas, as fugas desenfreadas com a família e finalmente Hagrid alcançando-os para entregar em mãos a carta que informava Harry de sua matrícula em Hogwarts.

3-Recusa ao chamado: o herói, por receio, quer continuar com sua rotina. Apesar de ser uma recusa superficial, pois Harry não agüenta mais os maus tratos de sua família, ele também tem medo do que irá encontrar, já que não conhece sua própria história.

4-Encontro com o mentor: o herói encontra alguém que o força a tomar uma decisão. Hagrid não o forçou propriamente, mas mostrou as vantagens de conhecer o mundo mágico ao qual ele pertence.

5-Travessia do umbral: o herói atravessa o portal entre dois mundos. Literalmente, Harry atravessa o portal mágico que separa o mundo trouxa do bruxo por duas vezes. A primeira, para compra de material, a segunda, no embarque para a escola.

6-Testes, aliados e inimigos: ponto onde a maior parte da história se desenvolve, onde o herói passará por testes, receberá ajuda (esperada ou não) e terá que enfrentar seus inimigos. Desde o primeiro até o sétimo anos de sua vida no mundo mágico, Harry passa por incontáveis provas de inteligência, de caráter e de força de vontade, ganha (e perde) aliados e enfrenta inimigos poderosos.

7-Aproximação do objetivo: o herói se aproxima do objetivo de sua missão, mas o nível de tensão aumenta e tudo fica indefinido. Harry precisa encontrar as horcurxes para cumprir (o que acaba se tornando) o objetivo de sua missão (ou melhor, para cumprir uma missão que acabou caindo em suas mãos, a partir do momento em que Sibila fez a profecia). No entanto, Dumbledore morre e o jovem bruxo passa por dificuldades cada vez maiores para destruir os objetos amaldiçoados.

8-Provação máxima: o auge do caos. Hogwarts sendo destruída, pessoas morrendo e Harry vê como única saída se entregar nas mãos de Voldemort. Ele não morre, mas “do outro lado”, vê as conseqüências dos atos do bruxo assassino e em uma última conversa com Dumbledore, ele percebe o verdadeiro significado de sacrifício.

9-Conquista da recompensa: a conquista de seu objetivo e de sua merecida recompensa. Ao se oferecer em sacrifício, Harry consegue destruir uma das últimas horcruxes existentes (Neville mata a última), minando cada vez mais o poder dito inquebrantável de Voldemort.

10-Caminho de volta: após conseguir seu objetivo, o herói volta ao mundo anterior. Entende-se aqui por “mundo anterior” quando Harry acorda novamente, volta à vida e enfrenta pela última vez seu maior algoz, derrotando-o e sendo parabenizado pelo feito.

11-Retorno transformado: o herói volta ao seu mundo transformado. Harry amadureceu e consegue reconstruir sua vida. Um vislumbre desse futuro é demonstrado quando seus filhos estão chegando na plataforma para o embarque a Hogwarts. Ele e sua família vivem entre os mundos trouxa e bruxo.

Um mosaico de gêneros em Harry Potter

O mito do herói é a base de qualquer mito. Harry, como o personagem principal e o herói da história, enquadra-se na maior parte dos estágios que formam um herói literário. Percebe-se que, para criar sua criança herói, Rowling utiliza muitos arquétipos encontrados em mitologias antigas. O surgimento deste gênero, mitologia, se deu em uma época em que a oralidade imperava, onde a palavra principal era a mágico-religiosa. As histórias eram transmitidas oralmente e os rituais mágico-religiosos não eram separados da realidade, ou melhor dizendo, da vida comum.

Fritsch, em seu trabalho One ring to rule them all, afirma que o grande avanço da narrativa de fantasia em comparação à narrativa mitológica está presente na escrita. O autor menciona Todorov, que postula que a diferença entre os gêneros fantástico, estranho e maravilhoso se deve ao comportamento oposto esperado para o leitor durante a leitura de determinada obra.

[…] o fantástico não dura mais que o tempo de uma vacilação, vacilação comum ao leitor e ao personagem, que devem decidir se o que percebem provém ou não da ―realidade‖, tal como existe para a opinião corrente. Ao finalizar a história, o leitor, se o personagem não o tiver feito, toma entretanto uma decisão:opta por uma ou outra solução, saindo assim do fantástico. Se decidir que as leis da realidade ficam intactas e permitem explicar os fenômenos descritos, dizemos que a obra pertence a outro gênero: o estranho. Se, pelo contrário, decide que é necessário admitir novas leis da natureza mediante as quais o fenômeno pode ser explicado, entramos no gênero do maravilhoso. Todorov (2004, p.24)

Seguindo essa definição, Todorov também afirma que o estranho e o maravilhoso têm suas próprias divisões. O fantástico propriamente dito, ou fantástico puro, está entre o fantástico estranho (acontecimentos que parecem sobrenaturais tem explicação racional) e o estranho puro (acontecimentos verdadeiramente extraordinários explicados racionalmente) de um lado, e o fantástico maravilhoso (relatos onde o sobrenatural é aceito) e o maravilhoso puro (o sobrenatural não provoca nenhuma reação) de outro.

Assim, é totalmente válida a caracterização da série como uma narrativa fantástica maravilhosa, quando o mundo ficcional é assimilado pelo leitor como uma realidade possível. A literatura de fantasia não é um gênero fácil de ser definido. Kesti, em seu trabalho Heroes of Middle-earth, se apóia nas seguintes definições:

Sabine Wienker-Piepho defined fantasy as ―the modern term for longer narrative texts which are similar to folklore genre‖ (2004: 32 [translation by author]). (…) Johanna Sinisalo (Sinisalo 2004: 14) defined fantasy by comparing it to fairytales. In her opinion, fantasy differs from a fairytale in the sense that it is a fairytale made exact: reality and entity together with a millieu that is both familiar and unfamiliar are the goals that the writer strives to achieve. / According to Maria Ihonen, there are three different types of fantasy. There is fantasy of a secondary world, like LOTR or Ursula Le Guin‘s Earthsea-series, where the events of the world do not take place in the same reality the readers live in. There is also second world fantasy, in which there is a gateway between the real world and the fantasy world, like in Alice in Wonderland, the Narnia Chronicles, or Peter Pan. In the third type, the world of the reader is opened to question by the secondary world of fantasy, as supernatural things keep leaking into the primary world. Examples of this include Mary Poppins and the Harry Potter-books, which are between the second and third type of fantasy (WIENKER-PIEPHO, 2004 apud KESTI, 2007, p.10).

Mais uma vez, Harry Potter é classificado como literatura de fantasia. E esta é definida ao ser comparada aos contos de fadas. Tolkien, em seu trabalho Sobre histórias de fadas, esclarece a origem dos contos de fadas e a matéria da qual são feitos, abordando as relações entre contos de fadas, mitologia e religião e entre história e mitologia. Ele também discute o destino dos contos de fadas e resiste sobre a idéia da credulidade infantil do leitor, pretendendo atribuir esse gostar da fantasia à coerência do mundo inventado.

Tolkien considera que um bom conto de fadas apresenta elementos fantásticos verdadeiros, onde o “Mundo Secundário” criado é verdadeiro em si mesmo. Para ele, a fantasia reforça a avaliação do leitor sobre o mundo real; a Fantasia não destrói a Razão, pelo contrário, quanto mais aguçada esta for, melhor será a qualidade da Fantasia.

Assim, voltamos ao ponto de partida. Todos os gêneros literários (ou a maioria deles) aqui mencionados estão ligados ao gênero da fantasia. De acordo com o postulado de Tolkien, Harry Potter é um conto de fadas porque o leitor aceita que certas capacidades e acontecimentos são possíveis. Como os gêneros fluem entre si, Harry Potter se torna um mosaico de gêneros literários.

Natallie Alcantara vai tentar conseguir uma Pedra Filosofal para ler todos os livros de que gostaria.