Artigos

Projetando Potter

Projetando PotterProjetando Potter
A despeito de uma atuação duvidosa, Harry Potter é uma personagem com certo garbo na grande tela.
Rodrigo Scalfo fala sobre a trajetória dos filmes e do porquê da personagem funcionar mesmo com… inconsistências de Radcliffe, um “jovenzinho dedicado”, como afirma a mãe do broto, mas não lá muito iluminado. A coluna completa, você lê na extensão.


por Rodrigo Scalfo

O cinema, considerado a sétima arte, é a arte do diretor, a arte em que a realidade é representada e recriada através dele, de tal forma que nossos sentidos são surpreendidos, chegando a nos provocar sensações que vão além das limitações físicas da tela. É assim que podemos sentir o cheiro do chocolate, quando Charlie e os outros premiados entram na fantástica fábrica (e em alguns momentos sentir até enjôo pela copiosa aparição desse que é dos principais veículos para a prática de um dos 7 pecados “de peso”, a gula) ou ainda sentir a brisa gélida do rio Tâmisa e a excitação do vôo quando a Ordem da Fenix escolta Harry pela noite de Londres, através das imagens de vassouras e Parlamentos projetadas sobre o fundo monocromático para efeitos especiais. Sem embargo, quem carrega o peso de produções assim, em primeira instância, são os atores que dão vida aos personagens. São eles que sofrem as conseqüências da extensão da ficção à vida real por parte de público que não sabe discernir as duas vertentes e da exploração da mídia sobre seus conflitos internos.

Basin afirmava que o cinema alcança sua plenitude ao ser a arte do real. Assim, partindo de toda a construção feita por Rowling, de uma realidade que já está consolidada em nós, leitores apaixonados, o cinema se apropria e reproduz, cria, transforma, vira do avesso a narrativa para dar verossimilhança. E obtém seu êxito.

“A pedra pedra filosofal” é o ponto de partida para o mundo mágico ser apresentado aos trouxas. Nos colocando como ‘Harrys’, a autora nos faz descobrir junto ao protagonista (e como um) a ansiedade e conforto que o novo provoca. Ansiedade, porque um mundo de possibilidades é oferecido a Harry (e a nós espectadores), como um dispositivo de fuga da fatídica vida na Rua dos Alfeneiros; e conforto, porque, assim como Harry, começamos a entender o porquê de nos sentirmos deslocados naquela casa em que não nos reconhecemos, com “aquelas pessoas”, vulgo parentes.

Porém, o Harry Potter de Chris Columbus e de Daniel Radcliff mostra um entusiasmo frio que a mirada mais distante do espectador que desconhece os parágrafos de Rowling vai tachar como mais um produto da cultura de massa (ou isso já acontece, ou estou tendo un deja vu) e colocar erroneamente Rowling, Philip Pullman, C. S. Lewis, Paulo Coelho, Dan Brown, num mesmo pacote (aqui não discuto o mérito, tampouco critérios, apenas reproduzo a resposta midiática do que acontece).

A densidade emocional de Harry Potter é alcançada através de uma verdadeira sucessão de mazelas. No cinema, é nas cenas de maior carga dramática que isto ocorre., Como no final do quinto filme, quando, após enfrentar,os comensais da morte no Ministério da Magia, Harry se encontra nos braços alvos de Dumbledore, ali no átrio principal –momento em que a câmera recua para mostrar a grandiosidade barroca das paredes negras ladeadas pelo dourado das lareiras; imerso numa batalha psíquica com Voldemort. Nestes momentos de alta tensão, o foco se prende a ele e às palavras de Dumbledore, que cuidadosamente tece bases seguras para que aquele consiga se libertar do domínio do Lorde das Trevas; No entanto, Daniel consegue nos estimular sentimentos mais pela composição da cena e arte do diretor, do que por sua própria atuação.

N’O Cálice de Fogo, depois de enfrentar todas as perturbações do labirinto, ser transportado junto a Voldemort e ver seu colega ser morto por uma das maldições imperdoáveis, Harry, num ímpeto alimentado pela aparição de seus pais no duelo com Aquele-Que-Não-Deve-Ser-Nomeado, volta aos territórios de Hogwarts levando o corpo inerte de Cedric. Em primeiro plano, no anfiteatro que se configura o espaço físico da cena, Potter-Daniel se debruça sobre o corpo sem vida e chora lágrimas de desespero e impotência para, em seguida, ser retirado pelo professor Moody. Angústia, desespero, pesar: é o que o ator tenta nos transmitir, mas que, por obra própria não consegue realizar: a cena que vemos no filme já foi “vista” por nós, quando lemos a intensíssima cena no livro-fonte. Por isso, a atuação de Daniel não é tão flagrantemente medíocre: envolvidos pelo espetáculo completo do longa metragem, sua presença física é apenas um dos elementos e nosso próprio Harry, construído previamente através de nossas leituras, guia nossa mente em direção a significados que, sozinho, Radcliff não provocaria. Desse modo, as lágrimas ali tentadas não dão a força necessária que o enredo exige, mas nos contentamos.

Em 2001, o ator britânico invadiu as telas em todo o mundo com o primeiro filme da série. Antes disso, contava com poucos trabalhos no currículo. Ao longo das produções dos filmes que seguiram, até hoje, Daniel Radcliffe foi nomeado a 14 prêmios, de acordo com o Internet Movie DataBase, e ganhou outros dois, incluindo melhor ator de alguma coisa. Ema e Rupert também seguiram na mira da mídia e levaram prêmios de reconhecimento público.

Aos 16 anos, Daniel foi o mais jovem não pertencente a família real a ter um retrato individual na Britain’s National Gallery. Em julho de 2007, os três atores deixaram as marcas de suas mãos, pés e varinhas em frente ao Grauman’s Chinese Theater, em Hollywood. Daniel ainda foi imortalizado com uma estátua de cera no Madame Tussauds, em Londres. Estes foram só alguns dos acontecimentos que marcaram as vidas dos nossos ídolos e significaram a influência acirrada da mídia de especulações sobre eles, reafirmando que o estereótipo potteriano vai perdurar por muito tempo. Se o bruxo trouxe a Daniel, e também Ema e Rupert, o reconhecimento mundial, além de uma conta bancária “interessante”, é certo que as “seqüelas morais” foram, pouco a pouco, marcando fundo suas carreiras. Veja Equus, por exemplo.

Equus foi um grito de socorro perdido entre a multidão, rebeldia, um intento de exorcizar Harry Potter da pessoa Daniel, que acima de tudo é um ator, mas antes disso, um ser humano. É fato que a peça de Peter Shaffer é extremamente pesada, mas explora uma obscuridade inconseqüente e patológica do anti-herói, diferente da série de livros, que tenta tratar o assunto pelos caminhos do bom samaritano (o que não quer dizer que seja desprovida de dramas e incompreensões humanas). Alan Strang, interpretado por Radcliffe, é… bem, não há grau de comparação com Harry Potter (o que mostra a disparidade entre eles).

Não significou apenas mais um trabalho para um ator. Representou aquela mão trêmula, desesperada, saindo das águas, buscando um apoio para não se afogar. Como se fora uma composição de um dos quadros de Forner ou até mesmo a “paródia biográfica” de Ibsen. Uma ruptura com o universo infato-juvenil de fantasias para se fazer notar e mostrar que o Daniel vai além do Harry.

Essa necessidade de significância e importância é comum em nós, pessoas, seres mortais. Ser reconhecido, original, diferente. Maneiras claras dessa busca em nossa sociedade são o dinheiro, o poder e a fama, atrelados ou agindo separadamente. A ânsia por reconhecimento pode ser manifestação de características como carência e medo. Entretanto, no caso de Daniel, o que vemos é sua necessidade de ser reconhecido como ator, não como personagem, uma vez que a mídia já atuou de tal maneira em sua vida que acabou por potencializar sua aclamação pública na figura de sua persona.

Projetando Potter
Rodrigo Scalfo é colunista do Ish.