Artigos

O mal em Harry Potter

Nosso novo colunista, Luis Nakajo, continua nossa área de Crônicas, tratando agora a respeito de um tema complexo a respeito do “mal” em Harry Potter.

Análise extremamente complexa, porém elucidativa, a respeito do que se define por “mal” e sua ligação com a obra de J.K. Rowling.

Você pode conferir a coluna completa aqui.

Deixe seu comentário e feedback, é importante para nós e para o autor. Se quiser, sinta-se livre para comentar a mesma em nosso Fórum.

O Mal em ‘Harry Potter’

Por Luis Nakajo

Ser mau não é um fim em si mesmo: é o estágio de transgressão alcançado na ânsia de se alcançar riqueza, poder, beleza, sexo, importância, cargos parlamentares, maioria no Congresso, petróleo no Iraque… de forma que não condiga com a dignidade que todos os homens merecem.

O Mal nos define, grosso modo, o oposto do Bem, tudo aquilo que o Bem não representa. Este simplismo mostra o quanto uma noção está diretamente atrelada à outra: Bem e Mal são termos que não existem um sem o outro, eles se definem pelo que têm de oposto, são extremos entre os quais nós humanos oscilamos no dia-a-dia, com preponderância para um deles; nunca existem em estado puro.
Mas Bem e Mal, fique bem claro, não são valores universais, nem existem por si só, como uma entidade independente. O Bem e o Mal são abstrações, valores que atribuímos às nossas ações: o Bem e o Mal são julgamentos sobre nossas atitudes. E estas atitudes são boas ou más de acordo com o fim que temos em mente ao realizá-las, ao escolher qual caminho nos serve melhor. Assim, uma ação é efetiva ou não. Essas intenções-propulsoras, por sua vez, também podem ser julgadas como boas ou ruins, de acordo com o respeito para com o livre-arbítrio das pessoas que nos rodeiam.
Bem e Mal, portanto, são valores arbitrários, que variam de sociedade para sociedade, de época para época.

Para J K Rowling, porém, a noção de Mal é intimamente ligada a outra cara ao Ocidente: a de liberdade de escolha. O Mal com M maiúsculo é aquele que resulta da vontade pura e deliberada, sendo de pouca importância o passado ou as circunstâncias que cercam o processo de escolha –as pressões do momento. Quando muito, a pressão para escolher algo “mal” apenas torna a escolha pelo “bem” algo virtuoso, mais honrado (lembram-se de Dumbledore no fim d’O Cálice de Fogo? Ele não diz que chegará um momento em que a escolha seria entre o fácil e o correto?). Os gregos chamam esta escolha sob pressão de enkratéia, e é através dela, da luta contra a ‘tentação’, que um homem se torna virtuoso, ou Bom.

Desde o primeiro livro, e ao longo de toda a série de aventuras de Harry Potter, temos plena consciência das semelhanças que envolvem o herói e o vilão principal da trama: são mestiços [half-blood]; ambos têm uma infância barra-pesada; descobrem que são bruxos quando completam 11 anos de idade; e até em seu físico chegam a se assemelhar.
Acabam aqui, entretanto, as semelhanças.
As ações de Harry Potter e de Tom Riddle os colocam à parte, desde a infância. São suas escolhas que os colocam em lados opostos, um guiado pelo Amor e seus derivados; o outro, pelo Egoísmo e seus congêneres.

ARISTÓTELES E AS VARINHAS MÁGICAS
Para o filósofo grego Aristóteles, Harry e Tom teriam o mesmo télos, a potencialidade de cada ser humano no momento em que se nasce, a força germinativa dentro de nós. Os dois são bruxos e têm, prova máxima, varinha com o mesmo princípio ativo –as penas da fênix Fawkes. E os dois são, acima de tudo, humanos, e são, assim, submetidos ao processo de escolha desde que adquirem consciência de si mesmos. Como humanos e como bruxos, tem capacidades parecidas, que podem ou não ser desenvolvidas de possibilidades para realidade.

Enquanto Tom está pronto para acreditar que é “especial”, “diferente” (no sentido de “melhor”), Harry se sente estupefato com a revelação de sua condição bruxa, demora mais para aceitar o que Hagrid lhe diz. Quando Dumbledore visita Tom no orfanato, enxergamos o oposto: o garoto parece ansioso em demonstrar sua superioridade e enumera, no calor da revelação, seus atos de manipulação e punição com uma pontada de orgulho. Há aqui dois traços do Mal que Rowling põe em relevo: a consciência e a vanglória.
Não basta desrespeitar os outros –isso pode ser acidental: é com vontade que se faz o Mal mais abjeto. Para controlar a magia é necessário esforço e, para se esforçar, é necessário consciência –e, mais que isso- vontade. Um feitiço no mundo mágico, sabemos, só é dominado quando deixa de ser apenas um encantamento para ser desejo, corpo e mente alinhados. Só assim a magia funciona. Só assim Harry se transporta para o telhado da escola –desejo de não ser espancado; só assim seu cabelo cresce de um dia para o outro –desejo de não passar ridículo; só assim Tia Guida se transforma num balão humano –desejo de calar a boca de quem desqualifica sua mãe. E, reparem bem, todos estes feitos são realizados sem o auxílio de varinha, que direciona a magia de maneira mais concentrada, creio eu.
Pouco importa aqui o quanto de magia os dois fizeram na infância ou na adolescência ou na vida adulta. Importa a intenção por trás de seus rompantes de magia. Tom usa seus poderes para chantagear, ameaçar, se vingar. São atos que têm como finalidade sua auto-promoção. Mas Tom poderia ter como finalidade roubar um reles picolé de abacaxi e mesmo assim ser qualificado como “mau”: não é o fim a que almejam –grandeza ou picolé de abacaxi- mas os meios de que se utilizam para alcançá-los: o que torna seus atos “maus” é a intromissão premeditada feita contra o livre-arbítrio alheio. Tom, já desde criança, desobedece o que Emmanuel Kant chama de imperativo categórico, que é a lei mínima de civilização.

KANT, ROBINSON CRUSOÉ E OS BONZINHOS PERVERSOS
O imperativo é nada menos que uma re-edição daquele ensinamento superantigo, de “fazer aos outros o que queremos que nos façam”, a Regra de Ouro. Kant, porém, se utiliza de argumentos racionais para embasar o imperativo: devemos agir, segundo ele, de modo que nossas ações possam ser copiadas pelos outros e, mesmo assim, nada de escabroso aconteça, nada de nocivo aconteça aos homens, ao mundo inteiro. Roubar é contra o imperativo, porque passa por cima da Liberdade alheia -e se todos passassem a roubar, não haveria mais o que se roubar; se todos matassem, idem. Assim, considerar os outros “fins em si mesmos” é o mais racional a se realizar, exatamente porque todos desejam a Liberdade. Os outros não são ferramentas a ser usadas ao bel-prazer; são seres humanos, são consciências com objetivos, desejos e humanidade. Devem ser respeitados.
Reparem na ironia: nossa liberdade só é Liberdade na medida em que é limitada pelo respeito que nutrimos pelos nossos semelhantes, pelos que nos cercam. Porque liberdade não é necessária quando se está sozinho, isolado –Robinson Crusoé podia fazer o que queria, ninguém o via, não havia um outro a lhe exigir respeito; A Liberdade é necessária quando se está em sociedade, quando relações são travadas a toda hora, e temos de fazer concessões ao bem comum –quando chega Sexta-Feira, Robinson passa a pesar seus atos, porque agora há um outro a que ele pode causar dano.

Assim, não apenas no lado dos bandidos encontramos o Mal em ‘Harry Potter’. Bartolomeu Crouch, por exemplo, se utilizava de métodos desumanos para combater o que o Ministério considerava o terror; usava ameaças –dementadores, Azkaban, carta branca aos Aurores, que podiam agora matar- para enfrentar os perpetradores de atos contra a Liberdade alheia.
Como nenhuma das personagens de Rowling pode ser classificado tolamente entre boazinha e malvadona, encontramos gradações do mal infligido contra as pessoas. Mesmo quando é uma vingança ou represália –Hagrid prensando Karkaroff contra uma árvore- é um ato de vandalismo à personalidade o que se executa na prática; é o Mal se esgueirando pelas páginas de Harry Potter, entre mocinhos e bandidos.

MALDIÇÕES IMPERDOÁVEIS: O SUPRA-SUMO DO DESEJO MALÉVOLO
No espectro mais escuro da força, porém, encontramos exemplos bem mais recorrentes destas tiranias contra a Liberdade de viver em paz, de se desenvolver e de –ilusão maior de todos- se ser feliz.
Aqui adentramos outro aspecto curioso da maldade em Voldemort: as Maldições Imperdoáveis, que, como todo feitiço, tem de ser conscientes para ser eficientes. Estes mais ainda, ainda por cima. Os assomos de magia de crianças –exceto Tom, ao que saibamos- não envolvem tortura e assassinato, pois este tipo de maldição envolve muito mais paixão e desejo que qualquer feitiço de levitação ou transformação. Bellatrix Lestrange nos diz isso no fim de ‘A Ordem da Fênix’: precisamos realmente pretender, desejar causar dor, morte, controle da mente. Isso torna as Maldições Imperdoáveis atos maus ao extremo, por violarem a liberdade alheia em detrimento da fome de poder ou de outro objetivo –como conseguir relíquias de uma solteirona. Hepzibah Smith e todos os mortos por Voldemort foram meros degraus que ele usou para ascender e conseguir o que queria: imortalidade, importância, imponência.
Como misantropo potencial, pessoa que evita o contato com outras, Voldemort demonstra mais apreço por objetos famosos, por descendências e sangue do que à personalidade e ao valor inato de cada humano, um valor que deve ser respeitado quando se está em conjunto. Mas quem disse que Voldemort deseja fazer parte de um conjunto? Ele quer é construir um mundo seu, egoísta e completo, onde seus valores sejam os definitivos, onde seja ele o centro de um universo gravitado por servos, Comensais da Morte e marionetes.
Ser mau não é um fim em si mesmo, é o estágio de transgressão alcançado na ânsia de se alcançar riqueza, poder, beleza, sexo, importância, cargos parlamentares, maioria no Congresso, petróleo no Iraque… de forma que não condiga com a dignidade que todos os homens merecem.

SPINOZA E O MAL REFLEXIVO
O holandês Baruch de Spinoza, à sua maneira, considera que Deus é o Todo, o Completo, que não conhece limitação. Os seres humanos são desdobramentos desta energia/substância/potência primordial total. Quando Snape assassina Dumbledore, portanto, está não só cruzando o limite imposto pelo respeito à vida alheia, mas como também maltrata a si mesmo. Todo ato, para Spinoza, é um ato reflexivo exatamente pela natureza panteísta da ‘criação’ de Deus, que nem criação é: somos todos Deus desdobrados; somos não criaturas, mas criadores –ou partes dele.
(Seria o feitiço rebatido uma imagem vívida desta filosofia espinosana?)

Enfim, o mal em ‘Harry Potter’ é a representação de valores que ameaçam a ordem institucionalizada, a ordem social que mantém os bruxos unidos, em constante simbiose, com a possibilidade de se alcançar a felicidade.
Voldemort é uma ‘maçã podre’, assim como seus seguidores. Maçãs que quebram as leis de respeito à Liberdade de maneira especialmente mórbida e premeditada, de forma seriada; às vezes por puro enfado e prazer.
Seja por medo ou por ganância, por ódio puro ou por covardia, seus atos dizem mais que seus pensamentos, eles passam por cima da dignidade humana; e suas intenções, seja se protegerem, obedecer ao Lorde das Trevas ou conseguir riquezas, são más na medida em que utilizam os outros como meios e não como fins em si mesmos.
Eis o Mal que Rowling esboça em sua série.

O CONTRAPONTO DE NIETZSCHE E MAQUIAVEL
Friedrich Nietzsche, erroneamente associado ao regime nazista, detém pontos relevantes para comparação. Ele acreditava não no bem comum, mas no desenvolvimento das potencialidades individuais. Foi o filósofo da ‘vontade de poder’, e, para ele, o que importa ao homem é sair pelo mundo e enfrentá-lo de peito aberto, sem as muletas que são as instituições sociais –Nietzsche sai demolindo tudo, para dizer o mínimo. Mas, com certeza, ele não veria com bons olhos a tortura e o assassinato com vista a se chegar ao poder: é o valor do homem que importa para Nietzsche, não o fim que ele alcança, contrário do que Nicolau Maquiavel preconiza, independentemente do estrago feito às pessoas.

Luis Nakajo é estudante da Escola de Comunicações e Artes da USP