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O Leitor-Modelo de Harry Potter

Nosso colunista, Luis Nakajo, continua nossa área de Colunas com uma análise sobre o leitor-modelo de Harry Potter, o estilo narrativo focado na visão do próprio Harry e as surpresas proporcionadas pela autora durante a série. Vale a pena ler e se surpreender mais uma vez!

Você pode conferir a coluna completa aqui.

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O Leitor-Modelo de Harry Potter

Por que Harry Potter é tão magnético? Por que ler um bom livro dá tanto tesão? Por que tantas teorias surgem em decorrência de um só texto? Simples: porque ler é pôr em movimento uma máquina preguiçosa

Por Luis Nakajo

Harry Potter entra no mundo mágico junto de cada um de nós. Ele, assim como os leitores da série, não sabe como chegar à afamada plataforma 9 ¾; não sabe o que são Feijõezinhos de todos os sabores, nem como transformar lagartixas em caixinhas de rapé. Cada etapa de seu aprendizado enriquece nosso conhecimento de um novo mundo – o mundo em que Hogwarts, Azkaban, Beauxbatons e Quadribol fazem parte de uma enciclopédia toda nova, que passamos a compilar quando “botamos pé” neste novo mundo, admirável para alguns, execrado por outros.

LENDO HARRY PONDERANDO
Muito já se disse da estreiteza de visão dos livros de Harry Potter: é pelos olhos do protagonista que vemos quase tudo, com exceção de um ou dois capítulos inseridos no início de “Enigma do Príncipe” e “Relíquias da Morte”. Seja por sonho ou por Legilimência acidental, é pela perspectiva de Potter que a narrativa é vista, adjetivada e julgada.
Essa característica, porém, só deixa mais clara a intenção por trás do feito. Arriscaria a dizer que gostamos destes livros porque eles são descobertas progressivas, junto de uma personagem que não é mais ciente do mundo a explorar do que nós. Os poucos momentos em que lembro de Harry sabendo de algo mais do que deixa transparecer são narrados no Enigma e nas Relíquias.
No Enigma, quando ele engana Hermione – e os leitores – ao colocar falso Felix Felicis no suco de abóbora de Rony. O próprio Rony é engambelado neste jogo, e a graça de tudo é exatamente esta quebra de regras: Rowling camuflou o plano de Harry – quando o normal é a explicação, não raro ponto a ponto, de todos os planos do garoto. Nos acostumamos, nos seis volumes da série, a dividir com Harry uma jornada íntima, para levarmos a maior surpresa de todas nas Relíquias…
Nesse livro, a coisa é mais surpreendente ainda. Por um período longuíssimo, Harry esconde seu conhecimento sobre a varinha de Dumbledore – a narrativa segue sem uma alusão sequer a uma conclusão ou tramóia do jovem. Quando achamos que ele está completamente biruta de lutar com Voldemort, naquela cena tensa e dramática no extremo, ele revela seu segredo: surpresa para Voldemort e surpresa para o leitor que ainda não tinha ligado as peças.

ARMANDO A ARAPUCA
Todos os elementos para chegar à conclusão de Harry estavam lá dispostos: a morte de Dumbledore, detalhadamente contada, o desarme executado por Harry na mansão dos Malfoy, a tradição por trás da varinha… Mas a grande maioria de nós levou um baita choque, não juntou as peças antes do momento final. Por quê? Porque o leitor modelo da narrativa “Harry Potter” foi assim configurado – para guiar o leitor numa leitura em que Harry é transparente, em que a narrativa evidencia suas tretas e isso é normal.
No último momento, dá uma guinada radical – e consegue o efeito desejado: o de surpreender leitores que se esfalfavam desesperadamente em prever o final da série. Que leitor-modelo sacana, esse…
O “Leitor-Modelo” é, como o próprio nome diz, um modelo, criado pelo italiano Umberto Eco – que é semiólogo, além de romancista. Esse modelo explica o mecanismo de interpretação de texto, ao sugerir um leitor virtual, a que se destinam estratégias narrativas.
Quando Rowling, ao longo de seis volumes, nos acostuma ao acesso íntimo aos pensamentos e artimanhas de Harry Potter –e a contar com estes pensamentos como confiáveis-, ela está é armando uma maravilhosa armadilha para o sétimo volume. Assim, quando se espera que Harry nos conte o que fará a seguir, ela quebra o costume, nos deixa temporariamente no escuro -e acaba por gerar surpresa além da ordinária.
Mas como é que este leitor-modelo se configura? Aliás, como é que ele existe?

LEITOR: O CRIADOR DA OBRA
Segundo Eco, o texto é uma obra aberta. Ele não existe (não é realizado) sem a ação de um leitor. Sem essa peça, a obra permanece no virtual, na potencialidade. É uma “máquina preguiçosa”, com espaços em branco que o leitor preenche ao usar de lógica e de seus conhecimentos do mundo –isso tudo que, junto, chamamos de intuição. É, na verdade, essa a condição de toda e qualquer comunicação humana –a conversa com a quitandeira ou a leitura de livros em que o objetivo é não ter apenas um sentido. Se a cooperação leitor-autor falha, o leitor não entende o texto –o texto se torna ilegível ou é lido num fluir estancado.
Assim, não se gera o prazer do texto. E o prazer é o que Eco tenta explicar com seu modelo. Este prazer vem da co-escrita do texto. Mas ao leitor não é permitido um reinado absoluto –leituras forçadas operam fora da cooperação que todo texto propõe. Quando cooperam, leitor e autor se complementam. Quando um deles não encontra os requisitos do outro, gera-se ruído.

ENCICLOPÉDIA DE LEITURA
O autor antecipa o que o leitor enxergará num determinado trecho –faz isto ao pesar quais expressões usar, qual dubiedade deixar no ar. E o leitor, pouco a pouco, antecipa o que virá a seguir – com base na sua “enciclopédia”, o conjunto de tudo o que conhecemos sobre algo. A palavra “vassoura”, quando lida em Harry Potter, destaca alguns significados e funções da vassoura (como meio de transporte, material esportivo ou sonho de consumo) e deixa outros sentidos latentes, “narcotizados” (como utensílio de limpeza ou arma contra baratas).
O mesmo ocorre com elementos narrativos. Posso citar, bem por cima, a família Lovegood no Cálice e só perceber que esta citação foi feita depois de lida a Ordem. Posso descrever a queda de pêlos de Perebas em função de Bichento, porque rato tem medo de gato na enciclopédia zoológica, para depois mostrar que ele é, na verdade, um animago estressado, verbete válido na enciclopédia mágica. Posso introduzir Olho Tonto num capítulo para mostrar, no último, que ele era uma farsa.
Peguemos o exemplo de Olho Tonto.
Em uma segunda leitura do Cálice, depois de termos descoberto a armação por trás do Torneio Tribruxo, passamos a ver todos os indícios de que Olho Tonto não era Olho Tonto, ou, melhor dizendo, indícios de que ele poderia não ser Olho Tonto. Por exemplo, consideremos sua colocação sobre o que mais detesta: um Comensal que saiu livre (free) do desbarate da trupe de Voldemort. Sabe-se que Olho Tonto sempre preferiu prender a matar – isso nos levaria, como levou na primeira leitura, a comprovar o que se diz de Olho Tonto: um profissional zeloso, que prende e detesta quem tenha escapado do cárcere, ao se bandear para o outro lado.
Mas, na segunda leitura, a colocação ganha outro significado: a de que, para um Comensal que se estropiou feio em Azkaban, detestar Comensais que ficaram livres também é plausível. Na primeira leitura, o que nos faz passar por cima da segunda interpretação –que vem a ser a mais acertada- é o leitor modelo, que levou Rowling a tecer um texto em que Olho Tonto é um aliado, que vasculha o armário de Snape às escondidas (e depois descobrimos que o faz para preparar mais Poção Polissuco) e não um suspeito de estar infiltrado em Hogwarts sob ordens de Voldemort –essa suspeita cai sobre Karkaroff, construído pelo texto de maneira a sustentar tal hipótese. Na segunda leitura, Karkaroff é muito mais cagão do que um diabólico propriamente dito.
Todos os elementos do texto são atualizados por nós leitores, por meio duma seleção, feita por nós, e guiada pelo texto. O texto nos ajuda a iluminar determinados significados em detrimento de outros; ativa e desativa insinuações, sugere e desencoraja sentidos. Quando sabemos o fim e a solução do mistério, é fácil ver a ambigüidade e o que ela esconde. Do contrário, ficamos no escuro e apalpamos o significado de acordo com o contexto da frase e do que acreditamos de cada personagem, com base em seu desempenho em narrativas anteriores.
Alguns leitores, porém, podem enxergar o jogo e suspeitar que o texto deixa algo mais profundo em estado latente. Este leitor-Sherlock Holmes, ao reler o texto com cuidado, tem todos os elementos para fazer suas hipóteses –e a variedade delas que tivemos antes do lançamento de Deathly Hallows foi absurda.

SNAPE
A principal linhagem dessas teorias era sobre Snape: bonzinho, malvadinho ou no-meio-do-caminho? O leitor-modelo de Rowling propunha os três caminhos, cada qual com suas quinze mil toneladas de indícios. Era importante manter o mistério até o último momento. Cada uma das cenas que senhora Rowling escreveu sobre Snape despertava interpretações xiitas de cada lado. O leitor, de acordo com seu background e inclinação, interpretou Snape sob uma luz que o incriminava, o beatificava ou o introduzia no panteão dos hipócritas duas-caras fedegosos nojentos inescrupulosos.
Por cinco livros, nos acostumamos a suspeitar de Snape (potencial homicida, potencial ladrão de pedras filosofais, potencial informante de Voldemort) só para, ao fim de cada livro, nos frustrarmos… ele era um aliado… mas será? Ele poderia, como muitos argumentavam, ser um agente duplo –que faz um pouquinho pra cada lado e mantém sua “pele sebosa” longe do perigo.
Ou, ainda mais espertamente, se fazia de bonzinho para Dumbledore (com sua mania de acreditar na bondade das pessoas) e lhe preparava, isso sim, uma bela rajada de Avada Kedavra no topo da torre de astronomia. No Enigma, a situação de Snape pende mais para a última interpretação. Mas, assim que o livro saiu em língua inglesa, um site surgiu na rede para nos acalmar www.dumbledoreisnotdead.com (Dumbledore não está morto) desfiava todas as evidências de que Snape tinha usado um feitiço não-verbal camuflado num grito de “Avada Kedavra”. Lembrava a cena do Cálice, em que os Comensais usavam um feitiço, que levantava trouxas no ar, iluminados por um raio de “luz verde”. Argumentava, com muita consistência, que a posição de Dumbledore era muito parecida com a dos trouxas suspensos no ar: como que presos pelo pescoço.
Interpretações sem fim, conflitantes, igualmente válidas. Enxergava aquilo quem queria. Eu, que chorara sete noites consecutivas por Dumbledore, me apeguei à teoria e não a larguei até que Rowling viesse a público falar que Dumbledore estava morto mesmo. Se Rowling não falasse nada, eu seguiria, de acordo com minhas leituras, acreditando na ressureição gandalfiana de Dumbledore.
Voltando a Snape: algumas pessoas tiveram as bolas de cristal muito bem polidas. Juntaram as peças e conjeturaram que Lílian Potter tinha algum dedo na história –juntaram a cena da Penseira (Ordem da Fênix) com a conversa entre Lupin e Harry (no filme de Cuarón), dentre outros indícios. Mas, pelo que eu saiba (e eu lia quase todas as teorias concernentes), ninguém interpretou “corretamente” a colocação de Tia Petúnia, na Ordem. Quando ela explica o que é Azkaban (e quem lho disse foi “aquele garoto horrendo”), todos pensam, na hora, que ela fala de Tiago Potter (a quem ela não nomeia). Bem…era Snape o tal “garoto horrendo”…
Maldito leitor-modelo!

COMPETÊNCIA INTERTEXTUAL
The point is: o leitor modelo é o responsável por todas estas lambujens. Quando forçamos um pouquinho, porém, podemos interpretar o texto de maneira mais tirânica, fora dos esquemas do autor. Posso escrever fan fictions slash, as famosas. Elas vêem Harry Potter e Draco Malfoy como amantes ainda não-resolvidos, Gina e Luna como um par em potencial. Li outro dia uma fan fic em que Colin Creevey se declara para Harry Potter (bem sexualmente, ainda por cima). Há muitos indícios nos livros que podem sustentar estas hipóteses –mas acho que as teses homossexuais são resultado mais de uma leitura libidinosa feita por alguns leitores do que de segundas intenções do autor.
Ao mesmo tempo em que nos frustra, o leitor-modelo gera tensão em torno da narrativa. Nos faz configurar mundos possíveis, soluções que podem ou não se provar verdadeiras, com o andar da carruagem. Se todo texto fosse unívoco, de única leitura possível (coisa que não é), a vida seria uma imensa chatice robótico-pré-programada. Nossa ansiedade completa o texto dum sentido de respeitoso assombro (awe). Ao pormos o texto em movimento, nos envolvemos de maneira muito mais profunda com a palavra, com as personagens de ficção –e com o mundo novo em que nos metemos via plataforma 9 ¾.
O texto passa a ser também nosso. Ou podemos, fora do esquema, distorcer a história e criar outra, em que Harry Potter e Colin Creevey fazem aquilo na sala comunal da Grifinória e Ronald Weasley fica todo magoado, porque também ama o super-requisitado garanhão Harry Potter.

MORTE E RESSURREIÇÃO
Eco nos lembra, ainda, de um conceito muito interessante, que gostaria de dividir com vocês. É a noção de frame (ou encenações comuns). Elas são provenientes da competência intertextual do leitor Luis Nakajo ou do leitor Umberto Eco, por exemplo. Estes leitores lêem o texto e não só tapam seus buracos com significados sugeridos pelo texto, como também o antecipam com base em outras leituras. Eco oferece um exemplo interessante: a da revista Mad.
Dentre as histórias em quadrinho da revista, havia a de uma mocinha raptada e atada aos trilhos do trem. O mocinho vem e começa a luta com os vilões, enquanto o trem apita pela curva. O leitor Umberto Eco, com sua vasta cultura de cinema western americano, puxa um frame, o da moçoila-atada-aos-trilhos-que-é-salva-na-última-hora e antecipa um final açucarado, com beijo e mocinhos de mãos dadas. Bem… a revista Mad surpreende ao mostrar, no último quadrinho, a mocinha estraçalhada pelo trem. Ela (a revista Mad, não a mocinha estraçalhada) quebra um frame. As piadas também fazem algo do gênero. Sua graça vem do fato de que nossos frames são quebrados, em situações ridículas.
Em Harry Potter, para terminarmos o texto, há um trecho narrativo em que o frame já me antecipou o que aconteceria em seguida. Quando Harry vai se oferecer, de braços abaixados, para o raio mortal de Voldemort, por amor a seus amigos, no momento quase-final da saga, me vêm à mente um frame configurado há séculos pela Bíblia: o do sacrifício que redunda em ressurreição. Isso ocorre com o leãozinho das Crônicas de Nárnia, também. Eu nem tinha lido o livro de C.S. Lewis, mas achei que o leãozinho, no filme da Disney, afinal de contas, tava dando uma de Jesus Cristo pra cima da Tilda Swinton (a bruxa má, que, com seu portentoso facão, estripou o Messias leonino).

FONTES
O Leitor-Modelo é exposto no livro “Lector in Fabula” (editora Perspectiva). Este livro é de leitura cerrada –eu quase dormi em alguns pontos, tamanho o nhenhenhém técnico de Umberto Eco. Leitura muito mais arejada –e interessante- é o livro “Obra Aberta”, em que Eco fala da abertura da obra de arte, falando de música, literatura e arquitetura com toda a desenvoltura do sapiente senhor que é. O livro também foi publicado pela Perspectiva, e é o quarto volume da coleção Debates, com detalhes de capa em vermelho.
Grande parte das teorias de que falei ou mencionei indiretamente aqui são provenientes dos maravilhosos ensaios (editorials) do site Mugglenet.com. A fan fic slash que li –e de que gostei, apesar da maneira irônica que a cito no texto- é “Amado Rival”, de Lucas Sasdeli. Uma busca Google e vocês conseguem ler a história.

Luis [Guilherme] Nakajo é leitor de Harry Potter. E se esborrachou muito por conta do leitor-modelo rowlinguiano. Mas se esborrachou com prazer, este ser masoquista.