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O Fenômeno Harry Potter

Nossa nova colunista, Sonia Manzoni, continua nossa área de Crônicas, tratando agora a respeito da qualidade literaria das obras de J.K. Rowling

Uma reflexão inteligente e intrigante sobre o que é literatura e o que realmente diferencia uma obra de arte de uma intrigante e envolvente obra. Não deixem de conferir.

Você pode conferir a coluna completa aqui.

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O Fenômeno Harry Potter
Por Sonia Manzoni

O meio acadêmico, cuja credibilidade é indiscutível, tem critérios muito precisos para o estabelecimento do literário. As mais diversas teorias críticas podem ser invocadas para avaliar a importância e a literariedade de um texto. No entanto, invoco hoje, não propriamente uma teoria, mas o direito indiscutível de definir o que me agrada como leitora.

Em seu livro O que é literatura, Marisa Lajolo apresenta uma visão muito ampla e flexível do conceito de literatura. Ela diz que há critérios pessoais para estabelecer o que é ou não literário e eu concordo com ela.

Essa postura é muito interessante porque centraliza no leitor, em seu gosto e em suas impressões, o poder de caracterizar o literário.

Aliando-me a essa perspectiva, proponho-me a opinar, mais como leitora do que como estudiosa da literatura, sobre o fenômeno atual da indústria da cultura de massa: a série Harry Potter.

Acho que deveria salientar neste momento que não trato o livro como um fenômeno da literatura infanto-juvenil, mas como um fenômeno da literatura, porque vejo que desperta o interesse de crianças, jovens e adultos indistintamente.

Dia desses, lendo um livro, observei o poder mágico que a literatura exerce nas pessoas. Por minutos, horas, nós esquecemos toda a realidade exterior e nos transportamos para um mundo fictício, como se este fosse tão real e tangível quanto as realidades que nos cercam.

Pensando nisso, acabei me dando conta do que me agradou ao ler os seis volumes da série Harry Potter. Eles se baseiam em uma “mentira” tão bem costurada que o mundo fictício parece bastante verdadeiro. Permitam-me um pouquinho de teoria: Aristóteles afirma, em sua Arte Poética, que é melhor narrar o impossível verossímil que o possível inverossímil. Acho que isso diz tudo.

J. K Rowlling estruturou de tal maneira a história, que é difícil encontrar uma incoerência ao longo dos seis livros, apesar do volume de páginas de cada um.

A história do menino órfão, que vive de favor na casa dos tios, descobre aos onze anos que é bruxo, e passa a lutar contra o perverso bruxo que assassinou seus pais, é um tanto triste e poderia ter caído no lugar comum não fosse à surpresa a cada final. Nos quatro primeiros livros, você sempre descobre estarrecido que o culpado estava bem diante de seus olhos e você não percebeu. Depois dos quatro primeiros livros, que li pela curiosidade de desvendar os mistérios propostos, já estava completamente cativada pela história. Jogada de mestre de Rowlling.

Mas insisto que o principal mérito da autora é ter criado um mundo absolutamente coerente onde convivem bruxos e não bruxos. Há toda uma organização no mundo mágico responsável por encobri-lo. A estrutura deste mundo paralelo se assemelha em muitos traços à organização da nossa sociedade, contando inclusive com instituições importantes como mídia própria (como O Profeta Diário) e instâncias de poder bem definidas.

Escolas de magia espalhadas pelo mundo tratam de formar os novos bruxos e o intercâmbio entre os bruxos dos diversos países é regido por normas diplomáticas. Fiquei surpresa, por exemplo, ao ver o tapete mágico, objeto lendário próprio da cultura do oriente, ser tratado como caso específico do departamento do ministério da magia inglês responsável por questões internacionais.

A obsessão da autora por detalhes constrói um mundo plausível que afasta a série Harry Potter de livros que, apesar de consumidos avidamente pelo público leitor, são construídos com fissuras tamanhas que não convencem como ficção e ainda desmascaram a limitação de seu autor.

Vargas Lhosa, em entrevista à revista Veja, revelou ainda não ter lido Harry Potter, mas reconheceu que acreditava haver algo mais que a força da indústria cultural por trás do sucesso da série. Se ele está certo — e acho que está — acredito que acabo de apontar um dos segredos da coletânea.

É por isso que li e recomendo aos meus alunos. Harry Potter não me instiga a pensar em questões existenciais, não propõe metáforas intrigantes e exercícios de leitura e decifração, caros ao leitor experimentado, mas me faz sentir, como leitora, o prazer de ser levada a um novo mundo, perfeitamente desenhado, coeso e estruturado, que me aguarda quando inicio minha leitura.