Muitas formas de heróis foram apresentados aos leitores ao longo da história da literatura, desde os épicos gregos aos quadrinhos modernos. E Harry é, sem dúvida, um deles. É sobre as múltiplas faces do nosso bruxo preferido (o herói, o mártir e a celebridade) que Luis Nakajo disserta nessa análise. Quem, assim como nós, estava sentindo falta das ótimas colunas do Luis, leia e comente!
Por Luis Nakajo
Era um garoto que, como eu, amava calça jeans, camiseta e a liberdade de zapear a tevê a cabo quando os tios davam o fora. Esse é o Harry Potter que conhecemos, aos onze anos: um garoto com interesses próprios, comum, apagado, trouxa, individualista – doce, agradável, mas, sim, senhores, individualista. Que detesta as roupas dez números maiores herdadas de seu primo Duda Dursley.
É o que torna Harry uma personagem empática: o seu eu, o seu jeitinho. Ele é tão parecido com a gente… com gente de verdade…
Mas Harry não é apenas uma pessoa… ele é, para sua glória e desgraça, um herói. Ele é forçado a se desfazer do interesse próprio pouco a pouco até que, quando vê, está se arriscando pelos amigos e, mais que isso, pela vitória de uma verdade maior.
Mas restringir Harry ao papel de herói abnegado é reduzir a ópera a apenas uma linha. Há pelo menos dois outros grandes papéis que ele desempenha na série: mártir e celebridade. Essas duas figuras se situam em dois extremos de uma escala que o polonês Zygmunt Bauman enxerga ao longo da história do Ocidente. Em seu belíssimo ensaio, “De mártir a herói e de herói a celebridade”, Bauman defende que essa é uma história que parte do sofrimento como forma suprema de vitória e que culmina no bem-estar individual que não quer nada com isso.
NÓS, INDIVÍDUOS
Se para nós já é meio doido sair lutando contra um adversário insano como Voldemort, imagine o que dizer de um mártir, de um Harry que se oferece de braços abertos para a morte… Pode ser lindo, literariamente excitante, inspirador, mas quem faria algo do gênero?
Na nossa mente, é absurdo lógico, piração satânica morrer por uma causa. Pra quê ir para a fogueira, morrer empalado numa cruzada, se explodir numa mesquita, se eu posso viver minha vida numa boa, sem nenhuma ousadia ou sofrimento, se tenho ao meu alcance se não o luxo, pelo menos o necessário para viver com certo conforto até os oitenta, noventa anos?
Nossos valores são incompatíveis com o sacrifício do eu. Nascemos numa sociedade que honra o desejo pessoal imediato e o potencial da pessoa, não a vitória da causa islamista, a reconquista da Terra Santa ou a vitória de seu país na guerra. Amamos, acima de tudo, correr atrás dos nossos desejos, de nos realizar como profissionais, como amantes, como leitores, como ouvintes de música, como consumidores…
É tudo isso que J K Rowling questiona através da figura tripla de Harry.
MÁRTIR
O grande contra-senso do mártir é que ele morre e sua morte não tem sequer intenção “tática”. Harry se oferece à morte e isso é ilógico, porque ainda falta destruir uma Horcruxe para tornar seu sacrifício (usando da lógica da guerra) um ato produtivo. Voldemort, como é de costume, joga sujo e dá um ultimato: ou ele aparece, ou ele explode Hogwarts.
“Os mártires são pessoas que enfrentam desvantagens esmagadoras”, diz Bauman. Morrer é o caminho mais honesto para não renunciar sua identidade e os valores que ele abraça.
Harry é mártir também por não contar com o entendimento da multidão, bruxa e trouxa, que se beneficiará de seu sacrifício. No máximo, de acordo com Bauman, talvez ele consiga reconhecimento por sua nobre ação num futuro longínquo – mas somente se voar pelos ares por causa de um Avada Kedavra.
O mártir morre representando a resistência de uma minoria esmagada pela multidão ensandecida. É Dobby quem diz: Harry é a bandeira de esperança para as minorias pisoteadas do mundo bruxo, exatamente porque venceu o lorde das trevas, o símbolo dos fanáticos da superioridade sangue-puro. E ele vence exatamente como faz o mártir, exatamente como morreria um elfo doméstico: sendo atacado numa situação desfavorável. Sem lutar.
E isso acontece duas vezes: quando Harry é um bebê e quando Harry se oferece ao abraço da morte no final das Relíquias. Harry vence Voldemort nas duas ocasiões, quando este ergue a arma contra o bebê e contra o homem… sem que “a vítima” levante um dedo sequer!
A imagem é reveladora: quem mata acaba se matando, porque quem vence é quem é atacado. É exatamente esse o princípio do martírio (a lógica da resistência pacífica de Gandhi, que usa a mídia para fazer o tiro do inimigo sair pela culatra).
Quando, na cena da clareira, Harry abre mão da vida, ele completa sua jornada de dissolução do ego e vira, como diria Josef Campbell, um herói completo.
O HERÓI DE MIL FACES
Harry Potter se arrisca para salvar Gina do basilisco, para salvar Rony dos sereianos, para tirar Dumbledore da caverna escura, para salvar seu padrinho de Voldemort… a lista é comprida.
Quando todas as outras soluções lhe parecem impráticas, quando nenhuma outra pessoa (geralmente adulta) se mostra à altura, Harry aperta o cinto e assume a responsabilidade: é herói com H maiúsculo.
O Herói é descrito por Josef Campbell como o homem livre do ego, da infantilidade, das leis confortáveis de sua sociedade natal. Ele não depende mais da ação de protetores. O herói passa por mil peripécias, é aprimorado por uma galeria infindável de guias e de inimigos, passa para um mundo em que seus conhecimentos são insuficientes, em que ele tem de ser humilde e aprender a dominar sua ignorância, até que ele alcança uma verdade ou dádiva que deve trazer de volta à sua terra natal, pois isso (tipo o conhecimento das Horcruxes de Voldemort) é de suma importância para que esta mesma sociedade não se extinga.
O herói se transforma no amor à sua comunidade de origem, quando volta a ela, depois de transgredir alguns dos valores que essa mesma sociedade cultiva. Ele vira um redentor, um revolucionário.
Esse é o herói do mito arcaico – e Harry tem bastante disso.
Já a figura do herói moderno é encarnada no soldado da pátria.
Ele sacrifica seu prazer atual (sua vida pacata e comum) em prol de ganhos futuros, priorizando o longo prazo. E mais ainda: ele se sacrifica por ganhos coletivos, priorizando a totalidade (qualquer semelhança com Harry não é coincidência).
Mas soldados não morrem com facilidade (matar é o que eles fazem com maior facilidade…). Esses morrem só quando é muito necessário, quando não há outra saída. Mesmo assim, a morte de um soldado é uma baixa, uma derrota para o seu superior na hierarquia. Aqui já começa a se infiltrar a aversão à morte, que alcança seu auge em nossa modernidade tardia…
CELEBRIDADE
Heróis e mártires não têm espaço na nossa sociedade, afirma Bauman. A sociedade “líquido-moderna”, a sociedade do contato, do consumo, da rapidez, do descarte é uma sociedade que não teme apenas a morte e suas amigas (dor, humilhação), mas também a totalidade e o longo prazo que o herói, principalmente, glorifica.
O que temos são celebridades, uma espécie de herói esvaziado de valor próprio. O herói era cultuado pelo serviço prestado à pátria; a celebridade, brinca Bauman, é o cara que é conhecido por ser famoso, uma redundância.
Para muitos bruxos, consumidores vorazes de Profeta Diário; e para muitos trouxas, consumidores vorazes de mídias menos sofisticadas, Harry (e Radcliffe, e J K Rowling) não passam de rostinhos bonitos/ricos/excêntricos.
Harry Potter é perseguido por Rita Skeeter e tem sua imagem trabalhada ao ponto do ícone: menino com o raio na testa, garoto problema, celebridade. Como Britney Spears, os Simpsons, Zac Efron, Angelina Jolie, Paris Hilton, a galeria anual dos big brothers e fazendeiros… a lista é comprida.
A celebridade manipula a mídia e a mídia manipula a celebridade num jogo de interesses do qual é duro escapar. Se Harry se recusa a dar entrevistas (como faz a reitora da USP, por exemplo), ele cultiva uma imagem de mistério, de charme (ou de intransigência).
Mesmo que não veja as celebridades com bons olhos, Bauman reconhece que ela desempenha um papel social relevante (e, como tal, digno de sua atenção): “Tal como os mártires e heróis, [as celebridades] fornecem um espécie de cola que aproxima e mantém juntos grupos de pessoas que sem elas seriam difusos e dispersos”.
Se você acha que Bauman se refere a um fandom superdedicado em sessenta e tantas línguas, não está muito longe da verdade: o fandom também é uma comunidade interessante de ser estudada sociologicamente – assim como uma nação, um grupo lingüístico ou um império (assim como, de resto, a literatura de massa é um produto interessante de ser estudado pela teoria literária, sem prejuízo algum).
INDICAÇÕES DE LIVRO
Os ensaios de Bauman são bem ricos e claros. No Brasil, seus livros (mais de dez e crescendo numa periodicidade semestral) são lançados pela Jorge Zahar. Como introdução à obra do eminente sociólogo, eu indico, além de seu Modernidade líquida, Amor líquido, que explica muito bem o porquê das paixões contraditórias que infestam o mundo (e que também daria um ensaio interessante, mas enfim…)
A Legenda Áurea é uma compilação de hagiografias (biografias de santos, grande parte deles santos mártires), realizada por Jacopo da Varazze no século 13 e que temos traduzido no Brasil. Além de ter histórias muito edificantes, ela é publicada pela Companhia das Letras, numa edição caprichadíssima: capa dura, papel couché, fitinha pra marcar página… o preço, porém, é um martírio pra qualquer um.
Já O herói de mil faces do Campbell, é um livrinho azul claro editado no Brasil pela Cultrix (que tem uns títulos esotéricos muito maravilhosos em seu catálogo). Campbell é bem cheio dos misticismos, mas sua interpretação dos mitos de fundação das sociedades indígenas é soberba – de uma qualidade que este texto, numa menção rápida, não faz jus. Um texto sobre o herói de mil faces está sob revisão no momento e daqui uns meses, vocês o terão para ler aqui nas colunas.
Abraço.
Luis Nakajo