Dumbledore sempre foi “pensado como gay” por sua criadora, J. K. Rowling. Essa declaração causou fuá na mídia e acalorada discussão. Agora, em sua estréia no Potterish, Marisa Amante vai fundo e analisa o que de falácia e o que de pertinente há neste bate-boca. | |
Muitos consideraram o movimento um belo golpe publicitário de J. K. Rowling; outros, que era uma intromissão da autora em território desnecessário; outros, ainda, aplaudiram. . Partindo desse assunto espinhoso, Marisa tece comentários sobre as relações da série com a mídia e com seus leitores. A coluna completa, você pode ler na extensão deste post. Deixe seus comentários para Marisa, sejam espinhos, sejam flores. Semana que vem, você confere o texto de estréia de Rodrigo S. Bruno, sobre os faraós egípcios e a busca de imortalidade de Voldemort. |
Saindo do armário
por Marisa Amante
No dia 19 de outubro de 2007, puderam-se ouvir os aplausos ovacionais do lado de fora do Carnegie Hall. Nas palavras de um jornalista americano, quem estivesse passando por lá no momento poderia imaginar que havia estourado uma bomba, tamanho o estardalhaço. Não foi muito diferente disso: pode-se chamar de bombástica a revelação que causou tamanho entusiasmo por parte do público. No momento, ocorria uma seção de perguntas e respostas com a autora da mundialmente famosa série Harry Potter, J.K. Rowling. A causa da confusão foi a pergunta feita por uma jovem na platéia: Albus Dumbledore, diretor da escola de magia e bruxaria de Hogwarts, tão confiante do poder do amor, haveria amado alguém? Ela certamente não imaginava a polêmica causada pelo que viria a seguir. Rowling hesitou, e então disse: “Minha sincera resposta a você… Eu sempre pensei em Dumbledore como gay”. Pronto, conseguiu ouvir a explosão daí?
Pela primeira vez, Harry Potter foi discutido na mídia, não como fenômeno de vendas, mas por causa de uma revelação feita pela autora. Foi estranho, para os fãs de Potter, assistir a essa repercussão: acostumados a entrar em sites especializados para conseguir informações da série, viam agora em todos os lugares possíveis a notícia sobre Dumbledore. Desde então, a autora foi alvo de acalorados elogios e críticas, por parte dos fãs e de outros. Foi discutida a possibilidade de uma jogada de marketing, o direito da autora de revelar coisas de tamanha importância fora das páginas de Harry Potter, o possível envolvimento de homofobia nas opiniões contrárias à revelação, e a relevância da informação para a série. Nessa coluna, discuto todas essas questões.
Principalmente, gostaria de ressaltar que os fãs estão em melhor posição de discutir as razões por trás da revelação do que boa parte da mídia. A crença por parte dela de que Harry Potter é uma série infantil, sobre um “bruxinho” e sem grande valor literário, foi um dos principais motivos para tamanho choque diante da revelação. O nosso choque, por sua vez, veio do profundo envolvimento com a série, e todos sabemos que tal visão exposta pela mídia é tão precipitada quanto superficial. Só consegue chegar ao valor da informação quem não tem uma visão parcial da série, e nisso temos grande vantagem.
Acredito que a principal razão para os não-fãs de Potter acreditarem na teoria de “jogada de marketing” foi o pouco aprofundamento da mídia no assunto. Seu não entendimento sobre a importância da informação foi o principal motivo para essa cobertura superficial: diz-se que Dumbledore é gay, e ocasionalmente o nome do alvo da afeição do mago, mas não é explorado o valor dessa relação para a série, valor esse que a mídia parece ignorar. Tal declaração, dessa maneira, parece vinda do nada, e tem todas as características de uma boa jogada de marketing. Basta o olhar de alguém mais iniciado na série para esclarecer o valor da informação, e o olhar de um fã de Rowling para analisar o seu interesse e lucro pessoal com a revelação.
O bem o mal entrelaçados
O “x” da questão é que a relação aprofundada entre Albus e Gellert tem a ver com a queda cada vez mais pronunciada do maniqueísmo na série. O bem e o mal, tão distantes inicialmente, são aproximados, separados por uma linha cada vez mais tênue, e por vezes confundidos e fundidos ao longo da série. Tal evolução têm o seu ápice no volume final, Relíquias da Morte, com as revelações bombásticas acerca de Dumbledore, trazidas à tona pela biografia escrita por Skeeter. A “personificação da bondade e sabedoria”, que acreditava-se ser o professor, era pura ilusão. É explorado o seu descaso com a família, seu egoísmo e seu desejo de dominação sobre trouxas, tudo por meio de sua relação com Grindewald. Quando Gellert ainda não havia se tornado o maior mago das trevas antes de Voldemort, e Albus ainda não havia se tornado o bruxo mais poderoso e sábio de seu tempo, ambos já tiveram 17 anos, e durante um verão tiveram as mesmas ambições, falhas de caráter, e uma conexão profunda.
Tal relação explora a origem do bem e do mal por meio de dois homens que seriam tratados como suas personificações, e esclarece a idéia crescente na obra de Rowling de que não somos feitos só de Trevas ou de Luz, mas sim de um equilíbrio inconstante dos dois, e o que realmente nos define é o lado em qual decidimos agir. Revelar a existência de amor nessa relação de aparente amizade é levar toda a coisa a outro nível, extrapolar a aproximação entre o bem e o mal; é a cereja no topo. Gellert e Albus seguiram caminhos separados depois daquele verão, mas não vemos maniqueísmo nem quando analisamos os magos que se tornaram: Rowling espera que gostemos de Dumbledore no final das contas, mas deixa clara a sua tendência a controlar pessoas, como faria com marionetes. Ele também permitiu a morte de várias pessoas para adiar a sua batalha contra Grindewald, embora a dúvida sobre a morte de sua irmã somada ao amor pelo mago lhe dê alguma desculpa para agir assim.
Grindewald por sua vez, na sua cela em Nurmengard, tenta impedir Voldemort, bruxo com os mesmos objetivos que ele teve um dia, de ganhar a guerra. Não chegamos a saber o motivo ao certo: Grindewald pode ter finalmente encontrado remorso, ou, como Harry cogitou, preferido morrer a permitir a violação do túmulo de Dumbledore, seu antigo amigo. Porém, entre o remorso e a capacidade de amar, como aprendemos com Snape, não há muita distância; geralmente, a segunda leva ao primeiro. Em Relíquias, vemos o bem e o mal com olhos livres pela primeira vez.
A mãe superprotetora
Se um motivo para a homosexualidade de Dumbledore não é suficiente para eliminar a possibilidade de jogada de marketing, analisemos a conduta de Rowling a respeito. Não é prova suficiente a favor dela dizer que ela tem tanto dinheiro que nem sabe o que fazer com ele, e que, portanto, não precisaria de mais? Deve-se pensar se algum dia a autora preocupou-se com a integridade da série ou seu domínio sobre ela, ou se algum dia traiu-os por alguma parcela do bilhão de dólares que agora possui. A resposta é clara: Rowling sempre foi muito protetora com a sua criação. Demonstrou várias vezes, quando Harry começava a alcançar fama, que seu principal objetivo era manter a integridade da série: ela nunca deixaria Harry Potter aparecer em embalagens de congelados.
Quando começou a se falar sobre contratos para uma franquia cinematográfica de Potter, Rowling ficou não com um, mas com os dois pés atrás. Só fechou contrato com a Warner Bros depois de ter garantia de que ela teria controle completo sobre o destino da série, e de se assegurar de que a produção teria caráter britânico, a começar pelo trio principal. Até hoje é muito orgulhosa dessa conquista. Mesmo quando lhe atacaram sobre a homossexualidade de Dumbledore e todas as razões de porque ela não teria direito de fazer tal declaração, ela respondeu calmamente sobre os seus motivos para enxergá-lo daquela maneira. Sua impaciência, no entanto, cresceu com o interesse inconveniente dos jornalistas a respeito do assunto – era só o que lhe perguntavam. Ela então passou a defender que os personagens eram dela, e que o direito de atribuir características a eles também pertencia a ela. Rowling continua tão protecionista em relação à sua criação quanto era na época que Potter ganhava fama, e nada indica que o dinheiro a tenha modificado nesse ponto. Ela não venderia Harry Potter por nada, nem nunca vendeu. Vale ressaltar também que Rowling é conhecida pelas suas declarações polêmicas – que incluem a criação de um personagem zoófilo. Mas ninguém faz manchete sobre isso. Homossexualidade parece ser mais condenável e surpreendente do que zoofilia, afinal de contas.
Ela tem, no entanto, direito de revelar algo dessa magnitude em uma entrevista, ao invés de expor o assunto no livro? Muitos fãs que reprovam a declaração de Rowling defendem que, a partir do momento que o livro sai das prateleiras, é exclusivamente daquele que o adquire, e esse não mais precisa aceitar informações extras do autor. Certamente, a aceitação não é forçada, mas é preciso lembrar que Rowling disse repetidas vezes que essa relação, para os mais atentos, está exposta no livro. Algumas pessoas enxergaram, mas são menos numerosas, provavelmente, do que os defensores de uma relação amorosa implícita entre Sirius e Lupin. Ainda assim, há antecedentes que indicam que Rowling está realmente falando a verdade: não é a primeira vez que ela pensa ter deixado claro nos livros algo que não é tão óbvio para os fãs. Como a relação não é explícita nos livros, ainda é opção dos leitores aceitar ou não a visão de Rowling em relação ao seu personagem. A leitura crítica é extremamente necessária, e, portanto, qualquer crítica às declarações da autora é positiva, desde que possua fundamentos.
Se esses não se relacionarem com o fato de que a homossexualidade não serve bem ao personagem, tendo em vista que a homossexualidade por si só é apenas a atração por pessoas do mesmo sexo, e não um pacote com várias outras características, então certamente são válidos. Jo Rowling, por sua vez, é grande defensora do senso crítico. Naquela mesma entrevista, no Carnegie Hall, ela disse que seus livros são “um longo argumento a favor da tolerância”, e que pretende estimular nos seus leitores o questionamento a respeito do que dizem a mídia e as instituições. Essa declaração ganhou uma ovação quase tão grande quanto aquela a respeito de Dumbledore. Ela tem os meus aplausos.
Marisa Amante é carioca, tem 16 anos e se dedica atualmente a completar um ensaio sobre o funcionamento e a criação do deluminador.