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Parados no tempo

Quando Harry entra n’A Toca pela primeira vez, fica maravilhado com a praticidade das mágicas na casa dos Weasley. Da mesma forma, Arthur imagina como deve ser a vida em meio à dependência tecnológica em que vivem os trouxas. Nos livros de Harry Potter, a analogia que Rowling faz entre esses dois campos é muito clara.

Porém, nossa colunista Bruna Moreno coloca a questão com maior profundidade, questionando como funciona a vida, principalmente no ramo das Comunicações, no mundo bruxo. Estariam eles parados no tempo? Confira o texto e deixe seu comentário!


Por Bruna Moreno

Esses dias estava passando “A Câmara Secreta” na TNT e, pela milésima vez, resolvi assistir. Incrível como certas coisas, que antes pareciam meros detalhes, de repente passam a saltar aos nossos olhos. Em uma determinada passagem, logo quando Harry chega à Toca resgatado pelo Ford Anglia, nos encontramos com Arthur Weasley na mesa do café-da-manhã tentando parecer interessado na cultura trouxa. Ele profere uma sentença que não se encontra nos livros: “Bom, Harry, você deve saber tudo sobre os trouxas. Diga-me: qual é exatamente a função de um patinho de borracha?”.

Falem a verdade, essa pergunta soa nos nossos ouvidos como deveras absurda. Não porque sabemos para quê efetivamente serve um patinho de borracha (embora a maioria dos brasileiros não tenha banheiras em casa), mas sim porque ele não tem nada para ser um objeto particularmente trouxa.

Pelo menos ─ e paradoxalmente ─, não no mundo de Rowling.

Desde a era medieval
Antes de conhecer Harry Potter, como você imaginava uma bruxa? Talvez uma mulher feia, baixinha, nariguda, verrugenta (pelo menos uma verruga, e provavelmente na ponta do nariz), conhecedora de ervas e, portanto, cozinheira de poções, habilidosa com alguns artefatos mágicos, como uma vassoura voadora, e próxima a bichos não tão fofinhos, como cobras, sapos, aranhas, corujas, ratos e gatos pretos. Isto é praticamente o resumo do modo como os trouxas enxergam os bruxos, tanto na realidade quanto na ficção, não é?

Esta imagem estereotipada surgiu possivelmente na Idade Média, quando a instituição religiosa vinculava a magia (ou qualquer manifestação não-cristã) a aspectos essencialmente negativos. Hoje é a instituição midiática (quer exemplo maior que a Disney e sua Malévola, de “A Bela Adormecida”?) que continua a propagar esta mesma imagem das bruxas, e por isso continuamos imaginando-as assim, com direito à risadinha maligna e tudo o mais.

Nem a nossa querida tia Jo, com todos os seus estudos vernáculos, foi capaz de escapar das influências culturais e midiáticas. É só atravessarmos o Beco Diagonal e já nos deparamos com chapéus pontudos, varinhas de condão, corujas, caveiras, caldeirões, velas, tochas, vassouras, penas e pergaminhos. Tudo ─ ou talvez grande parte ─, desde os objetos ao latim dos feitiços, remete-nos fortemente à imagem universal das bruxas, isto é, àquela imagem criada na Idade Média.

“Ok, mas os livros não se passam na Idade Média, mas sim na década de 1990”, você lembraria. Pois é. Seria natural, se bruxos de fato existissem, que eles acabassem por aderir certos costumes trouxas advindos da tecnologia. Por isso, concluo, Jo se viu obrigada a conjugar alguns itens novos aos antigos.

“Ah, vem mexer no meu caldeirão/ E se mexer como deve ser…”
A voz de Celestina Warbeck reverberou com essa música na sala de estar da Toca, em dezembro de 1996. Era o Especial de Natal promovido anualmente pela Rede Radiofônica dos Bruxos ─ sim, a rádio bruxa de todo dia, que os anima durante as manhãs e os encantaria durante os congestionamentos se, obviamente, eles fizessem uso de carros.

A enciclopédia do próprio Ish, ao fazer menção à RRB, explicita que ela funciona à base de magia, e não do modo convencional trouxa (ondas eletromagnéticas ─ muito mágicas para mim, diga-se de passagem). Eu, no entanto, não me recordo de nenhuma passagem específica nos livros que deixe claro este fato. Para efeitos desta coluna, portanto, prefiro desconsiderar esta informação.

O rádio é um dos aparelhos que invadiram o mundo dos bruxos. Fora ele, apareceram outros aparatos tecnológicos surgidos em épocas posteriores ao século XV: a locomotiva, o telescópio, o vaso sanitário e rede de esgoto (super tecnologia sim, pois impediu a proliferação de muitas doenças!), o jornal (imprensa regular), a fotografia… enfim, sem que os leitores se dessem conta, a tecnologia trouxa marcou presença na história de Harry Potter. Ainda que às vezes modificados (vide a disparidade das fotos estáticas e móveis), esses objetos demonstram claramente que não existem aparatos típicos nem de bruxos, nem de trouxas.


“ALÔ! ALÔ ESTÁ ME OUVINDO? QUERIA ─ FALAR ─ COM ─ O ─ HARRY ─ POTTER!”

Mas por que alguns objetos não co-existem nos dois mundos? Quero dizer, o pato de borracha que tanto intriga Arthur Weasley não tem por que não existir no mundo bruxo, onde, nós sabemos, existem maravilhosas banheiras (especialmente no banheiro dos monitores, a Murta que o diga).

E o telefone ─ ou o “feletone”, como insiste nosso querido Ron Weasley ─, assim como a televisão, as lâmpadas, as geladeiras (nunca vi uma em todos os livros! Como eles conservam os alimentos?), os ferros a vapor, os fogões a gás, enfim, todas essas coisas que simplificam nossas vidas, por que elas simplesmente não existem para os bruxos? Não estou pedindo por celulares ou guitarras, mas por eletricidade, for God’s sake! E se o grande problema for ela (embora ela seja, para nós, a grande solução), por que não o equivalente mágico de tais objetos? Por que, ao invés de magicamente modificados, eles simplesmente não existem para os bruxos?

Eu deveria pensar que Jo imaginou algum tipo de aversão bruxa aos aparatos trouxas criados após a Idade Média, como uma ânsia por manter a cultura dos ancestrais e o âmago da verdadeira “bruxalidade”. Mas isso não faz sentido, se considerarmos o aparecimento do rádio e dos outros mencionados.

Eu só consigo chegar a uma conclusão: bruxos gostam da alienação em que vivem, e são esnobes o suficiente para achar que nem patos de borracha podem fazer parte de seu mundo.

Google it
Ok, talvez eu tenha sido muito dura com eles. Afinal de contas, devem existir muitos Arthurs Weasleys amantes de trouxas, e muitas Hermiones Grangers crescidas e influenciadas pelas duas culturas. O que eu quis dizer (isso é verdade) é que a maioria deles é, inevitavelmente, como Dursleys bruxos, irredutíveis e preconceituosos (não intolerantes, veja bem; intolerância praticam Voldemort e companhia, o que é bem diferente).

Mas eles estão com os dias contados, certamente.

Eu não sei vocês, mas minha vida mudou drasticamente em 2003, quando minha internet deixou de usar aquela rouca conexão discada e passou a ser de banda larga. Hoje, tudo o que eu faço necessita e depende de uma pesquisa, de uma confirmação, de um pedido por e-mail; se chove ou por qualquer outro motivo a internet cai, a vida para. Vejo meus amigos; sempre um ou outro com o mp3 no ouvido (às vezes parece colado), outro twitando pelo smartphone, outro comentando do MMOPRG que jogou no fim de semana. Ora, basta pouco: olhemos para nós, aqui, nos encontrando no próprio Ish, publicando nossos textos na Floreios e Borrões, conversando com gente de todas as partes do país pelo fórum do Grimmauld Place. Embora infelizmente este não seja o cenário da maioria brasileira, ele é, sem dúvidas, a grande tendência mundial.

E estamos só em 2010! Como serão nossas vidas em 2016, o ano em que se passa o fatídico epílogo “nineteen years later”, do Relíquias da Morte? Até que ponto a comunidade bruxa ignoraria os avanços tecnológicos e a forte globalização do mundo trouxa? Será que o pequeno Albus Severus segurará uma varinha de madeira como seus ancestrais, ou fará as magias dando um toque na tela do seu iPhone?
(Se é que, cá entre nós, estes artefatos que tocam música, rodam e gravam vídeos, conectam à internet, servem de agenda e “ainda” fazem ligações só podem ser movidos à magia… só podem…)

Bruna Moreno deu ao Sr. Weasley um iPod de aniversário.