Lia Wyler traduziu dezenas de livros, entre técnicos e literários, além de uma boa quantidade de infantis. Foi ela a tradutora dos sete livros da série Harry Potter, além dos outros três que compõem a Biblioteca de Hogwarts – Quadribol Através dos Séculos, Animais Fantásticos e Onde Habitam e Os Contos de Beedle, o Bardo. Ao longo de quase uma década, Lia abraçou os desafios imprevisíveis de traduzir uma série ainda em processo de escrita, ganhando o Prêmio Monteiro Lobato em 2001.
Em homenagem ao aniversário dela, nossa tradutora Ana Alves Rolim preparou uma lista com algumas traduções desafiadoras de Harry Potter que tiveram boas soluções nas mãos de Lia. Leia a seguir!
Em 1999, Lia Wyler traduzia A Pedra Filosofal, ainda sem saber da grandiosidade que os demais livros da série teriam no Brasil e no mundo. Naquela época, há 18 anos, tomou as decisões tradutórias que seriam a base de todos os outros livros, como a adaptação do primeiro nome dos personagens. Para isso, teve como base um público com uma realidade bem menos virtual do que a de hoje: a internet banda larga nem havia sido lançada no Brasil.
Até 2007, ano de lançamento de As Relíquias da Morte, muita coisa mudaria e transformaria o público-alvo de suas traduções. Fabienne, filha de Lia, conta que o momento que mais emocionou sua mãe se deu em Relíquias da Morte: “É quando Snape, à beira da morte, fica olhando os olhos de Harry porque eram iguais aos de Lilian.”
Ela também influenciou muitos leitores. No meu caso (lá pelos 12 anos), li A Ordem da Fênix tendo pela primeira vez a consciência de que se tratava de uma tradução. Isso só ocorreu porque achava terrível esperar cinco meses para poder ler o livro em português. Hoje, tendo me tornado tradutora (aliás, por causa de Lia), fico nervosa pensando em como ela conseguiu o feito de traduzir um material tão complexo e extenso com um prazo que não me parece mais tão longo. Além disso, quanto mais experiência tenho no mundo da tradução e mais entendo as camadas de dificuldade que caracterizam a profissão, maior é o meu respeito pelo trabalho de Wyler e dos demais tradutores. Um trabalho hercúleo, como sempre ouço profissionais mais experientes dizerem.
Porque traduzir vai muito além de olhar no dicionário o significado de uma palavra em outro idioma. Precisamos considerar o contexto, a finalidade, o público-alvo e muitos outros fatores que vão além do significado. Nas palavras da própria Lia e de outros tradutores, “a tradução é uma ponte entre duas culturas” – e, no caso de Harry Potter, uma ponte entre mundos. A dificuldade triplica quando as palavras sequer existem no mundo trouxa.
Alguns dizem que o tradutor é invisível até que se encontre um erro no texto. Mas a capa da invisibilidade de Lia escorregou há muito tempo pelos corredores de Hogwarts e, ao menos na minha opinião, a culpa é do peso das suas traduções geniais. Nossa eterna gratidão a Lia Wyler, a ponte por onde a magia ingressou em nossas vidas.
Por Ana Alves Rolim
Colaboraram Larissa Ramos e Mônica Figueiredo, preparadora de originais da Editora Rocco
Lia Wyler teve muitos desafios ao longo da tradução de Harry Potter. Muitos deles já foram debatidos pela própria tradutora em entrevistas. Ela já contou que uma das táticas para saber se a tradução estava boa era ler o texto para sua neta, Fernanda, que tem a mesma idade de Harry. Além disso, segundo sua filha Fabienne, para traduzir cenas em que Rony fala com a boca cheia em A Ordem de Fênix, Lia pediu para a neta encher a boca de marshmallows e dizer algumas frases. A escolha pelo uso da gíria “Patético” também teve influência do vocabulário de Fernanda. Para homenageá-la, reunimos 10 traduções desafiadoras que tiveram boas soluções em suas mãos.
Goles – Quaffle: à primeira vista, pode até parecer que a bola usada pelos artilheiros nos jogos de quadribol recebeu um nome inventado em português, mas na verdade é uma tradução quase literal de “quaff”, que significa “beber muito, em grandes goles”. Ou seja, uma palavra já existente na nossa língua ganhou um uso completamente novo de forma tão natural que demoramos para perceber.
Esquelesce – Skele-Gro: a poção que faz os ossos de Harry crescerem novamente recebe o nome formado pelas palavras “esqueleto” e “cresce”, tanto no original como na tradução.
Lembrol – Remembrall: o objeto mágico de Neville que avisa quando você esquece de alguma coisa tem seu nome originado no verbo “remember”, que significa “lembrar” em português. Wyler escolheu a mesma palavra para nomeá-lo em nossa língua e também acrescentou a terminação “-ol”, conseguindo manter a sonoridade da terminação original.
Bisbilhoscópio – Sneakoscope: o objeto mágico que detecta as Artes das Trevas tem o nome original baseado no verbo “sneak”. Um de seus significados é “esgueirar-se sorrateiramente”, sentido que foi captado muito bem por Lia com o verbo “bisbilhotar”.
Bicuço – Buckbeak: um dos animais preferidos de Hagrid, o hipogrifo é nomeado por causa de seu bico (“beak”, em inglês). Em vez de usar a palavra já existente “bicudo”, Lia preferiu criar um termo novo acrescentando o sufixo “-uço” (vamos lembrar da nossa dentuça favorita, a Mônica), já que a palavra Buckbeak também foi inventada no original.
Malfeito Feito – Mischief Managed: já quanto às palavras mágicas que “apagam” o Mapa do Maroto, Lia substituiu a aliteração do original pela rima, solução que funcionou muito bem em português, além de manter o sentido do original.
Almofadinhas – Padfoot: o apelido de Sirius Black se refere às almofadas das patas de sua forma de animago, um cachorro preto enorme. Lia acrescentou o diminutivo, uma característica comum de apelidos brasileiros.
Abro no fecho – I open at the Close: a enigmática mensagem que Harry encontra no pomo de ouro em As Relíquias da Morte foi um grande desafio tradutório. Como “close” no original tem o sentido secundário de fechar, ao fazer trocadilho com abrir (open), mas também tem o sentido principal de conclusão ou término, a tradutora precisou encontrar uma solução que acomodasse os dois sentidos. Podemos pensar também em “fechamento”, mas essa solução me parece muito longa para imaginarmos escrita no pomo e não transmite o mistério do original. Fernanda, neta de Lia, conta que a avó só resolveu a questão após terminar o texto e de fato compreender seu significado.