Além de ótima Literatura, os livros de Harry Potter oferecem a oportunidade de aprender outras línguas, como o inglês e o latim. Você sabe de onde vem a origem das expressões dos feitiços, por exemplo? “Expelliarmus” é fácil, mas e Alohomora, tem ideia?
[meio-2]Na nova coluna de Bruna Moreno, você tem uma bela aula de Letras, como se fosse aluno da própria J.K. Rowling. Quer aprender? Leia e deixe seu comentário!
Por Bruna Moreno
Embora quisesse estudar Inglês na faculdade, Jo Rowling se viu pressionada pelos pais a estudar Francês e Línguas Clássicas. Um erro, ela disse; para mim, o maior dos acertos. Vocês não precisam ser estudantes de Letras como eu para saber da enorme influência que as línguas estrangeiras (ao inglês, claro) tiveram sobre nossa série preferida. Uma delas, apesar de morta, foi capaz de enfeitiçar todos os personagens de “Harry Potter”, de Dumbledore até Lord Voldemort: o latim.
Um pouco de teoria
Ser bruxo é muito fácil: basta ter uma varinha que te escolha, um bom movimento de mãos, saber o eu significam as palavrinhas que você tem de dizer… pronto! Feitiço fresquinho saindo!
Tudo bem, tudo bem, eu sei que não é assim. Tirando a parte do ter ou não ter magia (isso é detalhe), aprender latim não é fácil. São necessários quatro anos na graduação para se ter uma noção básica da língua, depois mais mestrado e doutorado, para os corajosos poderem propor traduções de textos clássicos. Eu estudei apenas um ano e meio, não por falta de vontade, mas de oportunidade. Por isso, com os conhecimentos que tenho, minha intenção nesta coluna será apenas lhes dar a teoria para entender a análise que farei a posteriori (para já introduzir um poquito).
Ainda que tenha dado origem a línguas como nosso Português, o Espanhol e o Italiano, o Latim tem uma estrutura bem diferente: os termos da oração não têm que ocupar uma posição fixa para que haja compreensão, podem ficar em qualquer lugar desde que suas terminações indiquem corretamente qual é sua função sintática. Por exemplo: “seruus”, que significa escravo, com este formato “seru + -us” indica que a palavra desempenha a função de sujeito; com o formato “seru + -um”, “seruum”, ela se torna objeto da oração.
Por isso, dizemos que os substantivos e os adjetivos variam conforme o caso, isto é, eles mudam suas formas e se declinam (se flexionam, quase como verbos em Português, pois é!). São seis os casos: nominativo (que indica que a palavra é sujeito), acusativo (objeto), genitivo (que indica atribuição, como o “apóstrofe + s” do Inglês), dativo, ablativo (esses dois eu vi pouco, então não atreverei a falar bobagens) e vocativo. Fora isso, essas palavras também variam conforme gênero: masculino, feminino ou neutro (como em Alemão).
Os verbos se comportam como os nossos em Português, flexionando-se segundo tempo, modo, voz, aspecto e pessoa. Então, tomemos como exemplo o verbo “amare”, que é o nosso amar: amo (ego), amas (tu), amat (ele, ela, aquilo), amamus, amatis, amant. Parecidíssimo, não? Seria lindo se todos seguissem essa primeira conjugação… mas existem mais cinco. Pois é. Cada uma delas variando por aqueles outros cinco fatores, cada um deles variando conforme seus próprios fatores. Pois é. E nem tudo é regular. Enooorme pois é.
Uma coisa importante a se saber sobre verbos em latim é que eles serão sempre encontrados no dicionário não em sua forma infinitiva (amare), mas na primeira pessoa do presente do indicativo (amo). Isso evita possíveis dúvidas de conjugações. É nesta forma que encontramos a maior parte dos feitiços em “Harry Potter”.
A seguir, proponho uma lista com os feitiços que considerei mais conhecidos, com possível pronúncia, conforme estudos latinos, e possível tradução (ou não…).
Artes das Trevas
Cruciatus, crucio (possível pronúncia: krúkio): O substantivo “cruciatus” está no nominativo; é a tortura, a ação de infligir dor em alguém. “Crucio” é o verbo na primeira pessoa; algo como “eu torturo”.
Imperius, imperio: Possivelmente vem de “Imperium, impero”. “Imperium”, nominativo, designa a força de quem comanda, o exercício da autoridade. “Impero”, primeira pessoa, “eu comando, dou ordens”.
Morsmordre: Composição de “mors”, nominativo, que significa “morte”, com, possivelmente “mordex, mordo”, que significa “morder”. O feitiço de conjuração da marca negra seria, então, algo como “mordida da morte”.
Sectusempra: De “sectura”, substantivo feminino no nominativo que se refere ao processo de cortar.
Magia Branca
Accio (p.p.: ákio): Sufixo ad, que traz o sentido de “em direção a”, mais o verbo “cio” ou “cieo”, primeira pessoa, “mover”. Então, “mover até minha direção”.
Alohomora (p.p.: alorromôra): Li teorias que afirmam ser a junção de “alo” (“fazer crescer”, “intensificar”) + “hoc” (isto) + “mora” (“obstáculo”). Vocês já perceberam que não faz o menor sentido, não é? Como um feitiço que abre portas pode pedir para aumentar o obstáculo?! No entanto, não consegui propor nenhuma tradução; só queria o gostinho de desmistificar esta.
Fidelius: Talvez Jo tenha criado este substantivo do adjetivo masculino “fidelis”, que significa “fiel”.
Finite incantatem: Aparentemente, “finite” seria o imperativo do verbo “finio”, “demarcar”, “delimitar”, no sentido de pôr um fim. “Incantatem” é o acusativo do substantivo “incatatum”, “encanto”. Obtém-se, assim, algo como “demarcai/ finalizai o encanto”. Esta teoria entra em colapso com o priori incantatem, como vocês verão a seguir.
Expelliarmus: para mim, não existe tradução que contemple o significado deste feitiço. “Expelli”, tudo bem, vem de “expello, expellire”, “expelir”. Agora “armus”, contradizendo tudo o que todos os sites potterianos postam, não é, nem de longe, “arma”: significa “flanco”, isto é, ombro de animal. O momento em que flanco se torna arma, em português, ficou obscuro na minha pesquisa.
Expecto patronum: Fico em dúvida se “expecto” venha de “expectoro, expectorare”, que significa “soltar”, ou de “expeto, expetare”, que é algo como “pedir, exigir”. “Patronum” é bem fácil: é o acusativo de “patronus”, “patrono”. Poderia ser, então, “soltar o patrono”, ou “pedir pelo patrono”.
Impedimenta: É o plural do substantivo “impedimentus”, um “obstáculo” ou “barreira”. Este feitiço, então, traz o recurso de várias proteções.
Legilimens (p.p.: leguilimêns): Tudo bem, “mens” é mente. Mas “Legili” é uma palavra inexistente. Como todos os sites, procurei partir do verbo “lego, legere”, que significa “ler” ou, mais ao pé da letra “roubar”, “coletar”. Porém, esta palavra não se declina para “legili”. Enquanto não sabemos de onde bem o “legili”, vamos continuar com o tão difundido “ler mentes”.
Lumus: Ao contrário do que muitos pensam, “luz” é “lumen”, não “lumus”. A mim parece que Jo inventou esta versão nominativa para o feitiço que cria luz. O que o anula, “nox”, aí sim existe: é o nominativo da palavra “noite”.
Obliviate (p.p.: obliuiáte): Do verbo “oblivio”, primeira pessoa, “eu esqueço”, flexionado no imperativo: “esquecei!”.
Priori incantatem: Partindo do dicionário e da expressão “a priori”, é certo que “priori” está na forma ablativa. No entanto, para que pudesse fazer sentido com o substantivo “incantatem”, ambos deveriam estar no mesmo caso — ou ablativo, do primeiro, ou acusativo, do segundo. Também é estranho pensar que este feitiço não consegue correspondência com o “finite incantatem”, com quem aparentemente compartilha a mesma estrutura. A única tradução possível que encontrei, ainda que ela não siga nenhuma lógica dentro da língua, é algo como “feitiço anteriormente”, “feitiço antedecente”.
Rictusempra: De “rictus”, substantivo no nominativo que denota a abertura da boca — de onde vem o riso, efeito deste feitiço.
Riddikulus: Do adjetivo “ridiculus”, “capaz de fazer rir”, “engraçado”.
Uédiósi: Confesso que este foi o feitiço que mais me deixou curiosa durante a série toda. Para mim, se havia um que não tivesse origem latina, seria ele. Bom… minha pesquisa provou que eu errei. “Vediosis”, ou “Veiouis” (“u” vira “v” em maiúsculo), é o nome latino de um deus grego que aparentemente era semelhante ao deus Júpiter. Se vocês se lembram, Lupin usa este feitiço para fazer uma brincadeira de Pirraça sair voando em disparada. Parece coerente com a ira de um deus, não?
Por que Latim?
As explicações que já li a respeito tendem a defender as influências acadêmicas de Rowling e a ligação da magia com o que é antigo e clássico. Eu prefiro enxergar as coisas de modo mais… divertido, digamos.
Todos sabem que o latim vulgar foi a língua usada no Império Romano. Quando ele inevitavelmente se dividiu e o Império do Ocidente decaiu, a sociedade começou a se organizar de maneira diferente (grupos que moravam em feudos, com poder político descentralizado e economia auto-suficiente dependente dos servos) e iniciou-se o período chamado Idade Média. Nessa época, o latim não morreu — pelo contrário, pode-se até dizer que se fortaleceu. O feudalismo foi fortemente influenciado pela religião católica, que tinha adentrado no Império Romano quase no seu finalzinho. A Igreja, instituição fortemente consolidada, tornou-se mais poderosa do Ocidente, embora não fosse nem um pouco acessível. O motivo? Tanto a Bíblia quando as missas realizadas não foram traduzidas do velho latim.
Onde a aula de História se encontra com “Harry Potter”? É logo depois, quando a Igreja começa se sentir ameaçada pelas novas religiões protestantes e dá início aos tribunais de Inquisição, que puniam com tortura ou sentenciavam a pena de morte àqueles acusados de cometer heresias. Heresia, para quem não sabe, é o ato contra a fé cristã — e a magia ou bruxaria, claro, são praticamente os ápices do comportamento herege.
Agora me digam: não é a mais perfeita ironia escrever um livro em que bruxos invocam magia com a língua com qual eles eram condenados na Idade Média?! Rowling certamente foi dona de um sarcasmo sem igual, digno de Severus Snape, e a vingança que concedeu aos bruxos não poderia ser mais doce.
Bruna Moreno não revela, mas teve aula de Linguística com a Tia Jo.