Na edição de hoje do jornal O Estado de São Paulo, saiu uma reportagem sobre a tradutora brasileira da série Harry Potter, Lia Wyler, contando a respeito dos preparativos para tradução do sétimo livro Harry Potter e as Relíquias da Morte e as críticas dos fãs em relação ao seu trabalho. |
Leia um trecho da reportagem abaixo e o resto em notícia completa.
“Ela saca da gaveta dois elásticos de borracha, daqueles de amarrar bolos de dinheiro, e os usa para segurar o livro aberto, mantendo as folhas juntas. A pequena régua laranja, toda remendada com durex e sem centimetragem, serve para ela não se perder a cada linha da página e a acompanha há 38 anos. Lia apóia o livro, perto do teclado do computador, num objeto que parece uma miniatura da estante de partituras de um maestro. Coloca música clássica para tocar e enche a garrafa térmica branca com água fresca. Ela está pronta. Vai começar a mágica.”
Obrigado, Henrikki pela dica.
O Estado de São Paulo
De vez em quando, Lia acorda rindo. É numa daquelas manhãs em que ela desperta de mais um de seus sonhos malucos. Ela vive sonhando em inglês. Não é de se espantar, ela é bilíngüe… Mas, às vezes, Lia sonha em italiano, francês e espanhol, idiomas que não domina tão bem. E, para seu deleite, não raro ela sonha com línguas que nunca aprendeu. Ou que simplesmente não existem. É aí que ela cai na gargalhada e se diverte com sua própria Babel. A maluquice não é patológica, alto lá. É fruto de seu ofício. Lia Wyler é tradutora.
“Veja bem, tradutora profissional”, grifa. Ela foi escolhida para ser a titular brasileira na tradução de um dos maiores best-sellers da história da literatura mundial: a série de livros do bruxinho inglês Harry Potter. Desde o começo da saga, em 1997, Lia tem a tarefa de pegar palavras que a autora J.K. Rowling inventou, jogar num caldeirão de dicionários e repertório próprio, e criar sinônimos na nossa língua, satisfatórios para crianças, adolescentes e adultos, fãs do menino – muitos deles, fanáticos. Dez anos depois, ela se prepara para traduzir o sétimo, último e mais esperado livro da seqüência, Harry Potter e as Relíquias da Morte, que será lançado mundialmente, em inglês, na próxima sexta-feira.
Leitores ansiosos se amontoarão em filas às portas das livrarias, atrás do desfecho da história de Potter. Outros milhares encontraram na pré-venda pela internet uma forma de aliviar a ansiedade. Lia, não. Ela aguarda calmamente a cópia que a editora Rocco, responsável pela publicação da obra no Brasil, enviará para sua casa, no Rio de Janeiro. Só então começa a correria, a ansiedade de ter que traduzir centenas de páginas a toque de caixa – o lançamento do sétimo livro em português foi marcado pela Rocco para o dia 10 de novembro, apesar dos pedidos de Lia por um prazo mais longo.
A vista cansada das quase quatro décadas de profissão e os dois graus e meio de miopia impelem-na a pedir que a editora mande cópias ampliadas, “o máximo que a fonte do original permitir”. Na tela do computador, ela recria o universo de Hogwarts (a escola de magia que Potter freqüenta) usando fonte Times 14 e 125% de zoom. Ampliam-se as letras, amplia-se a imaginação de Lia.
Ela saca da gaveta dois elásticos de borracha, daqueles de amarrar bolos de dinheiro, e os usa para segurar o livro aberto, mantendo as folhas juntas. A pequena régua laranja, toda remendada com durex e sem centimetragem, serve para ela não se perder a cada linha da página e a acompanha há 38 anos. Lia apóia o livro, perto do teclado do computador, num objeto que parece uma miniatura da estante de partituras de um maestro. Coloca música clássica para tocar e enche a garrafa térmica branca com água fresca. Ela está pronta. Vai começar a mágica.
A experiência com Harry
Na tradução do primeiro livro, Harry Potter e a Pedra Filosofal, Lia contou com uma assistente e tanto. Sua neta, Fernanda, então com 9 anos – mesma idade do bruxinho -, ouvia as traduções que a avó fazia e reagia. Se a menina fizesse carinha de interrogação, Lia sabia que era preciso retrabalhar as palavras.
Se a garotinha simplesmente se deixasse levar pelas aventuras, travessuras e desventuras do menino, Lia mantinha o texto. A opção por traduzir os nomes próprios do livro, por exemplo, foi validada por Fernanda. Mas a tradutora tinha outra carta na manga: a própria infância. Por ter passado anos longe das irmãs mais velhas, ela tinha mais liberdade para brincar com os meninos – não era o costume das décadas de 30 e 40, mas ela sempre foi mais travessa que as garotas de sua época. “Conheço a cabeça dos moleques. Sei fazer bagunça como eles”, confessa.
Foi um baita susto. Ao saber que ia traduzir um livro infanto-juvenil, Lia não imaginava que se depararia com criações vocabulares tão complexas. A autora J. K. Rowling está longe de ser um Guimarães Rosa em neologismos, mas tem lá suas virtudes ao misturar palavras que normalmente não dariam liga. Ou ao inventar nomes para personagens e locais mágicos irreais. Na tradução desses termos surgiram os maiores impasses de Lia. O Knight Bus é um caso exemplar. Knight é cavaleiro em inglês. Bus é ônibus. Mas em Londres existe o Night Bus, que é um ônibus noturno. Claro que, no mundo mágico, um ônibus que circula à noite nunca será simplesmente um ônibus que circula à noite.
Assim, o Knight Bus de Rowling é um meio de transporte que resgata bruxos perdidos na madrugada. Agora, tente explicar isso tudo em duas palavras. Lá vem Lia com sua varinha de condão: Knight Bus virou Nôitibus Andante. A poção mágica para fazer crescer uma parte danificada do esqueleto, que Rowling chamou de Skele Gro (pedaços das palavras skeleton e growth em inglês, que significam, respectivamente, esqueleto e crescimento), virou Esquelesce na versão brasileira, que junta esqueleto com cresce. E por aí vai.
Só de Harry Potter Lia traduziu quase um milhão de palavras. Foram exatamente 968.197 – distribuídas em 4,2 mil páginas – entre as quais estão 989 vocábulos novos criados pela brasileira, correspondentes às invencionices de Rowling. Quando está traduzindo, Lia passa dez horas por dia em frente ao computador. Tanta intimidade com a história de Harry Potter, que ela classifica como um bom folhetim e não como obra literária, lhe rendeu inevitáveis preferências.
“Acho que só saberei avaliar isso dentro de dez anos”
Os personagens de que ela mais gosta não são os protagonistas da série. Ela curte mesmo os gêmeos Weasley, que “são muito criativos e perspicazes”, e a professora Minerva, “um dos personagens mais humanos da trama”. Hagrid, o bedel gigante, Lia considera mal explorado ao longo dos sete livros.
Lá no comecinho do fenômeno Harry Potter, a tradutora contava com a ajuda da própria autora. Trocava emails com J. K. Rowling, que fala português e já elogiou publicamente o trabalho de Lia. Podia solucionar dúvidas direto na fonte. Mas isso foi antes de Rowling se tornar a primeira escritora do mundo a ficar bilionária. “Agora, mando mensagens para a editora britânica e fico sem resposta”, conta Lia. Ela não se aperta. Recorre aos tradutores de outros países, que mantêm uma lista comunitária de emails, sempre recebe e dá dicas valiosas. Colegas brasileiros também dão uma forcinha.
Quem não ajuda em nada são os tradutores pirata. Há vários deles. São fãs que não querem esperar pelo lançamento do livro em português (por não querer pagar ou por pura ansiedade mesmo) e fazem uma versão bem menos elaborada que a oficial. Ainda têm a cara-de-pau de criar redes de comunicação nas quais pedem “o glossário da Lia” para agilizar a tradução clandestina.
Ela debocha: “Qualquer hora vão pedir diretamente para mim”, como se esperasse ansiosamente por esse dia. Irritada mesmo Lia fica com os fãs que criticam ferinamente seu trabalho. “É um livro para crianças e pré-adolescentes. A tradução segue esta lógica. Os jovenzinhos que criam comunidades no Orkut para tudo, inclusive para insultar meu trabalho, ficam bravos com a minha tradução porque têm vergonha de admitir que gostam de um livro para crianças. Não deveriam ter.”
A saga de Harry Potter chega ao fim e Lia, a tia-avó brasileira, não usa de muito sentimentalismo na despedida. Não sabe sequer dizer se vai sentir saudade. “Acho que só saberei avaliar isso dentro de dez anos”. Com certa amargura, diz até que acha que o bruxo trouxe tantas coisas boas quanto ruins.
Mestrado
A invisibilidade do tradutor, que ela defendeu em sua dissertação de mestrado sobre a história da tradução no Brasil, caiu por terra. Lia ficou famosa fora do círculo literário. Passou a ser convidada para dar palestras em universidades e eventos. Mas, para surpresa de quem acha que a tradutora se tornou bilionária, milionária que fosse, ela nega. No Brasil, não se paga direitos autorais para tradutores. “Hoje passo até certa dificuldade”, admite.
A brasileira já sabe a próxima mágica que fará. Vai trabalhar na tradução de poesia, a mais difícil, e começará por um livro para crianças da autora americana Sylvia Plath. É uma volta ao começo de tudo. Sua primeira tarefa de tradutora foi educar as duas filhas em duas línguas. As primeiras traduções profissionais, lá em 1969, não foram de obras ruins, “porque naquela época não tinha tanto autor ruim como hoje”.
Mas também não eram de nenhuma obra-prima. De documentos técnicos, como pareceres de engenharia para a construção da Ponte Rio-Niterói, a Chester Himes e seu Rififi no Harlem. Dez parece ser o número mágico de Lia. A cada década, acontece uma virada em sua carreira. A primeira foi ao traduzir A gruta de cristal, de Mary Stewart, com dez anos de profissão. Foi quando ela achou que tinha entendido o que realmente é traduzir e passou a trabalhar com obras de grandes autores, como Joyce Carol Oates e Henry Miller.
Dez anos depois, Tom Wolfe e sua Fogueira das Vaidades, “o mais complexo de todos os textos, por suas inúmeras referências e detalhes”. Outra década se passa e chega Harry Potter a suas mãos: “Meus olhos brilharam de novo”. A próxima virada, Lia já escolheu, será com poesia. Daqui a dez anos, quem sabe ela não publica as crônicas que escreve e esconde na gaveta…