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Fãs acusam J. K. Rowling de transfobia: ‘Continuo sendo fã de Harry Potter, mas não dela’

JK Rowling voltou às manchetes dos jornais na quinta-feira (19) ao defender uma pesquisadora britânica que perdeu o emprego em uma ONG depois de afirmar que ‘homens não podem se transformar em mulheres’ e se posicionar contra uma reforma na legislação que permitiria que tais pessoas alterassem o gênero na certidão de nascimento com mais facilidade na Escócia.

Maya Forstater trabalhava no Centro de Desenvolvimento Global, que combate pobreza e desigualdade que atingem pessoas em situação de vulnerabilidade, especialmente os LGBTQIA+, mas foi demitida depois de criticar pessoas trans no Twitter. Ela entrou na Justiça para acusar a ONG de censura e dizer que a demissão era ilegal, mas a Justiça do Trabalho do Reino Unido rejeitou o apelo na quarta-feira (18), motivo pelo qual a autora de Harry Potter saiu em defesa da pesquisadora.

“Vista-se como quiser. Chame a si mesmo do jeito que preferir. Durma com qualquer adulto que queira você. Viva sua vida da melhor forma, em paz e segurança. Mas forçar as mulheres a deixarem seus empregos por afirmarem que sexo é real?”

JK Rowling no Twitter na manhã de quinta-feira (19)

Fãs acusam JK Rowling de transfobia

A declaração gerou repercussão instantânea. Alguns internautas elogiaram JK Rowling por ter coragem de compartilhar a opinião, mas a maior parte dos usuários criticou a autora, principalmente os fãs.

A norte-americana Melissa Anelli, que escreveu Harry & Seus Fãs, um livro sobre a comunidade de fãs de Harry Potter com prefácio assinado pela própria Rowling, manifestou desagrado. “Não entendo comentários que apoiam pessoas transfóbicas. Não entendo o que custa ser gentil com pessoas cujo sofrimento você não é sequer capaz de entender. Dói demais ver isso”, escreveu no Twitter.

A escritora Melissa Anelli segura um exemplar do livro Harry e Seus Fãs
Melissa Anelli, que escreveu livro com prefácio assinado por J. K. Rowling, diz estar triste com declaração da autora de Harry Potter (Foto: Mr. Muggle/Reprodução)

O POTTERISH conversou com fãs transgênero, que acusaram Rowling de transfobia e disseram estar tristes com a declaração da autora. O professor de inglês Julian De Divitiis, de 21 anos, é um deles. Ele cresceu com Harry Potter e relembra que as histórias desempenharam papel importante em sua vida quando enfrentava dificuldades relacionadas à identidade de gênero, mas diz que ficou decepcionado ao ler a declaração da autora da obra que tanto lhe ajudou.

“Na adolescência, me sentia muito ostracizado e não pertencente ao ambiente que frequentava, então os livros de Harry Potter, os filmes, as fanfics e o fandom eram meu escape para um lugar em que eu sentia que pertencia.”

O professor afirma que, ao defender declarações que invalidam o direito de pessoas transgênero, JK Rowling se mostra transfóbica. Apesar disso, ele diz que não deixará de gostar de Harry Potter porque o carinho que sente pelas histórias não está ligado à autora, mas à relação que tem com a comunidade de fãs, que ele considera menos preconceituosa do que a sociedade em geral.

“JK Rowling criou uma coisa linda que gerou outras coisas muito bonitas criadas pelo fandom. Ela foi a origem, mas não é o que mantém o fandom junto. Qualquer show de problemática só reafirma o distanciamento dela com a obra e o fandom. O que mantém Harry Potter vivo é o que os fãs criam a partir da obra. Continuo sendo fã de Harry Potter, mas não dela.”

Julian De Divitiis veste cosplayer de Draco Malfoy
O professor Julian De Divitiis, à esquerda, acompanhado de amigos fãs de Harry Potter (Foto: Julian De Divitiis/Acervo pessoal)

A contadora Sara, de 29 anos, é fã de Harry Potter desde 2000, mas, diferente de Julian, não consegue separar a obra da autora. Ela diz que, apesar de as histórias terem contribuído indiretamente para superar suas dificuldades relacionadas à identidade de gênero, o amor que sente pela obra está se diluindo.

“Uma vez que os livros estimulam a diversidade e negam hierarquia social, ajudam a compor um sentimento de maior aceitação”, diz. “Gosto da obra original e isso não vai mudar, [mas] à medida em que a autora não exibe compromisso com a própria essência da obra, […] procuro em outros autores a defesa dos valores que julgo serem mais sintonizados com o mundo que acredito.”

A contadora aproveita a decepção com a declaração de JK Rowling para dizer que, apesar de Harry Potter ter mensagens que considera importantes a respeito de amizade, família, autoritarismo e repressão, as histórias não representam pessoas que não se identificam com o gênero ao qual foram designadas ao nascer.

“Os livros são tímidos demais ao dar representatividade para personagens LGBTQIA+. A autora perdeu a chance de escrever personagens que mostrassem para meu eu criança e adolescente que pessoas LGBTQIA+ podem ocupar espaços de destaque.”– Sara*

– Sara*

O escritor e influenciador digital Jonas Maria, de 28 anos, também faz parte da ‘geração Harry Potter‘. Ele está desapontado com a declaração de JK Rowling e diz que a situação é ainda mais dolorosa para pessoas trans devido à falta de representatividade citada por Sara. O amor que ele sente por Harry Potter, no entanto, vai além das próprias histórias.

“Falas como essas [de Rowling] nos matam diariamente. Os dados de mortes de pessoas trans que são assassinadas ou se suicidam são alarmantes”, diz. “Hoje não tenho nenhuma consideração pela escritora, mas continuo sendo fã dos livros. A história não é transfóbica. Não me enxergo nos livros, mas minha relação com eles se dá no que construí e interpretei e pelas pessoas com quem me conectei a partir da leitura.”

Caso de Justiça

O juiz do trabalho James Tayler considerou que a pesquisadora defendida por JK Rowling não deve voltar a trabalhar na ONG, afirmando que o comportamento dela pode ser prejudicial às pessoas em situação de vulnerabilidade atendidas pela instituição.

“A reclamante é absolutista em sua visão sobre sexo e um componente chave de sua crença é que ela se refere às pessoas pelo sexo que considera apropriado, mesmo que tal comportamento viole a dignidade e/ou crie um ambiente intimidador, hostil, degradante ou ofensivo a tais pessoas. Essa abordagem não é digna de respeito em uma sociedade democrática”, escreveu na sentença.

O documento escrito pelo juiz, publicado na quarta-feira (19), contém dezenas de Tweets escritos pela pesquisadora com críticas à transgeneridade, conforme a tradução do POTTERISH:

  • “Colocar a questão de inclusão transgênera como argumento de que pessoas do sexo masculino deveriam ser permitidas em espaços para mulheres tira o direito das mulheres à privacidade e é contra princípios liberais. É como forçar judeus a comerem porco.”
  • “Acredito que é impossível mudar ou perder seu sexo. Garotas crescem e viram mulheres. Garotos crescem e viram homens. Nenhuma mudança nas roupas ou no estilo de cabelo, nenhuma cirurgia plástica, nenhum acidente ou doença, nenhum uso de hormônios, nenhuma força de vontade ou condicionamento social, nenhuma declaração pode transformar uma pessoa do sexo feminino numa do sexo masculino, ou uma do sexo masculino no feminino.”
  • “Na realidade, Murray é um homem. É um direito de Murray acreditar que Murray não é um homem, mas Murray não pode forçar os outros a acreditar nisso também. Mulheres e crianças em particular não deveriam ser forçadas a mentir ou ofuscar o sexo de alguém.”
Sentença da Justiça do Trabalho do Reino Unido
Juiz diz que pesquisadora defendida por JK Rowling não deve voltar ao trabalho em ONG (Foto: The Employment Tribunals/Reprodução)

Nota de repúdio

A equipe do POTTERISH luta a favor do respeito e da igualdade. Para nós, Harry Potter sempre foi um símbolo de amor e diversidade, motivo pelo qual repudiamos o apoio de JK Rowling à pesquisadora Maya Forstater, que se mostrou por diversas vezes transfóbica.

*O nome foi alterado para manter a privacidade da entrevistada

Colaborou: Renato Augusto Ritto (revisão) e Rodrigo Cavalheiro (consultoria jurídica)

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