A colunista Isabela Boscov da revista VEJA falou muito bem sobre o Cálice de Fogo:
Pois Mike Newell, o diretor de O Cálice de Fogo, corta a bola que Cuarón levantou e finaliza sua jogada como um craque: o quarto filme da saga, que estréia nesta sexta-feira em circuito mundial, é o melhor de todos os já protagonizados por Harry Potter.
Leia o texto completo aqui que contém também comentários sobre o sexto livro.
Cinema
Adeus à infância
No melhor filme da série, Harry Potter descobre que não há magia capaz
de tornar fácil a maioridade.
Isabela Boscov
Escrito sob a influência simultânea e nada apaziguadora de cigarros, chicletes de nicotina e vinho (seqüela de uma malsucedida tentativa de largar o tabagismo), o quarto livro da autora J.K. Rowling é, por coincidência ou não, o seu mais febril até aqui – aquele em que Harry Potter deixa para trás os últimos vestígios da infância, em que um rapaz cheio de promessas é assassinado sem motivo, em que o arquivilão Lorde Voldemort ganha novamente um corpo, depois de mais de uma década de exílio no mundo dos maus espíritos. E é também o maior peso-pesado da saga de Harry: um calhamaço de quase 800 páginas, nas quais o enredo, em vez de convergir para um ponto, parece divergir para novas direções a cada capítulo. Especialmente depois do excelente trabalho do cineasta mexicano Alfonso Cuarón em O Prisioneiro de Azkaban, a adaptação de Harry Potter e o Cálice de Fogo (Harry Potter and the Goblet of Fire, Inglaterra/Estados Unidos, 2005) estava destinada, então, a ser o teste definitivo da série: ou esta retornaria à simples mímica dos livros de Rowling (como nos dois primeiros episódios, dirigidos pelo americano Chris Columbus), ou assumiria de vez o ponto de vista de Cuarón – de que livros e filmes, mesmo quando filhos da mesma mãe, são criaturas de personalidade e vocação distintas. Pois Mike Newell, o diretor de O Cálice de Fogo, corta a bola que Cuarón levantou e finaliza sua jogada como um craque: o quarto filme da saga, que estréia nesta sexta-feira em circuito mundial, é o melhor de todos os já protagonizados por Harry Potter.
A virtude de Newell é, acima de tudo, ser um leitor experimentado. O inglês já era um veterano do teleteatro quando se tornou um cineasta conhecido, há uma década, com Quatro Casamentos e Um Funeral. Não só seu forte é a adaptação, como não há gênero em que essa aptidão não o tenha levado a se aventurar. Graças a essa tarimba, Newell conseguiu identificar em O Cálice de Fogo uma espinha dorsal que não parece clara, à primeira vista (ou à segunda, ou à terceira), para o leitor casual de Harry Potter: o quarto episódio da série é na verdade um thriller, em que todos os acontecimentos, mesmo os mais díspares, resultam da determinação de Lorde Voldemort em obter três gotas do sangue do jovem bruxo para assim recuperar sua forma humana. É o caso, inclusive, de pensar duas vezes antes de levar crianças pequenas ao cinema: guiado por essa obsessão maligna, O Cálice de Fogo é não raro amedrontador. Mas, por conta dela, transmite também uma sensação com que O Prisioneiro de Azkaban apenas acenava – a de que se está de fato rumando para um clímax. Ao entrar de vez na adolescência, Harry Potter terá de enfrentar dilemas com que nem sonhava em seu ano anterior na escola de Hogwarts. Crescer, por exemplo, significa tornar-se dono de seu destino, mas também ter o destino de outros a considerar.
Newell não perde essas linhas mestras de vista nem por um instante – e é exatamente por isso que as duas horas e meia de O Cálice de Fogo parecem durar tão menos. Do grande campeonato de quadribol que abre o filme às trapalhadas dos meninos de Hogwarts com as garotas (e já não era sem tempo de elas começarem a acontecer), da espetacular seqüência em que Harry derrota um dragão ao seu primeiro duelo com Voldemort (Ralph Fiennes, numa caracterização caprichada), todos os elementos do filme obedecem à direção inflexível da trama. Se há um ponto em que Newell fica aquém de Cuarón, entretanto, é na capacidade de inspirar a parte mais jovem de seu elenco. De veteranos como Maggie Smith, Michael Gambon e Brendan Gleeson (como o excêntrico professor Alastor Moody), ele tira o melhor. Com a criançada, a empatia é menor. Daniel Radcliffe, em especial, parece ainda mais intimidado pela sua responsabilidade de protagonista do que nos primeiros filmes, e oscila aqui entre o não mais que razoável e o desajeitado. Já se sabe, então, qual será o desafio de David Yates, outro veterano da televisão inglesa, em Harry Potter e a Ordem da Fênix, que deve ser lançado em meados de 2007. Seus jovens atores estão crescendo a um ritmo mais veloz do que se podem rodar os filmes – mas não rapidamente o suficiente para acompanhar suas exigências dramáticas. Para certos impasses, não há magia que baste.
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A hora da verdade
No próximo dia 26, a tradução brasileira de Harry Potter e o Enigma do Príncipe (Rocco; tradução de Lia Wyler; 512 páginas; 54,50 reais), sexto volume da série da inglesa J.K. Rowling, chega às livrarias – e os fãs que ainda não o leram no original, que obteve vendas expressivas no Brasil, terão a sensação de estar sendo lançados numa dimensão paralela do noticiário internacional pós-11 de setembro. Feiticeiros são presos sem necessidade de provas ou acusações formais, inocentes morrem em atentados terroristas e Hogwarts, a escola de bruxaria em que se passa a maior parte da ação, é submetida a uma lei marcial e corre o risco de fechar. Tudo em conseqüência do terror promovido por Lorde Voldemort e perpetrado por seus seguidores fanáticos, os Comensais da Morte – uma espécie de “eixo do mal” contra o qual os esforços arbitrários e desencontrados do Ministério da Magia pouco podem.
O clima de insegurança e mal-estar de O Enigma do Príncipe é a maneira com que Rowling prepara terreno para o último episódio da saga (ainda sem data de publicação acertada), que, já se sabe, decidirá a parada entre Voldemort e Harry: a autora jura que não vai retornar aos seus personagens depois do sétimo episódio. Mas não é ele o ponto forte do livro. Quando exercita seu lado de repórter de atualidades (ainda que atualidades de um mundo imaginário), Rowling tende a ser ainda mais complacente do que o habitual com sua prosa, que neste sexto livro às vezes vai, vai e vai – e não chega a lugar nenhum. Seu talento maior é mesmo como fantasista, e é nesse particular que O Enigma do Príncipe se equipara aos melhores momentos da saga.
O príncipe do título é de identidade ignorada: trata-se do dono de um antigo livro de poções que, com suas anotações, fará milagres por Harry nessa matéria e, sem que ele suspeite, o levará também a conhecer mais sobre o passado de Voldemort e a origem de seu desejo de destruição. Intriga e tragédia aguardam não apenas o jovem bruxo e seus aliados (um dos quais terá uma morte chocante), mas também o leitor – desde que ele não desanime diante do jornalismo amador de Rowling.