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Hermione e Lupin

O preconceito e intolerância são tratados sem pudores na obra de Rowling. Por muitos, Voldemort é tratado como um Hitler metafórico que levanta uma guerra irracional contra aqueles que não têm sangue puro (trouxas e mestiços). A comparação é praticamente inegável.

No texto de hoje, o leitor poderá ter contato com mais duas personagens que, ao contrário, são vítimas de discriminação nos livros. Esta é a coluna de estreia de Marcio Fernandes, que não se importou em começar de cara com um assunto nada fácil. Não se esqueçam de lhe dar as boas vindas nos comentários.



Hermione e Lupin

por Marcio Fernandes

Quem nunca fez paralelos entre o mundo dos livros de Harry Potter e o nosso mundo real? Quem nunca comparou acontecimentos dos livros à sua própria vida ou a acontecimentos da humanidade?

O fato é que os livros de J.K. Rowling possuem inúmeras analogias com fatos do nosso mundo, muitas vezes mascarados, para que essas referências não fiquem claramente explícitas, ainda mais considerando que a série Harry Potter foi originalmente concebida para um público infanto-juvenil – e o sucesso avassalador com jovens adultos e adultos tornou-se uma consequência da qualidade da narrativa de Rowling, quase uma coincidência.

Mas gostaria de propor duas analogias que invocam temas não tão “educativos” ou “positivos”. E a primeira delas é a dicotomia entre “sangue puro” e “sangue ruim”.

Quando em “Câmara Secreta” nos deparamos com a sequência de Rony tentando azarar Draco Malfoy por ter chamado Hermione de “sangue ruim”, dificilmente imaginaríamos as proporções que isso poderia tomar. Uma pitada da importância da pureza do sangue bruxo para a série é dada em “Cálice de Fogo”, quando os Comensais da Morte aparecem pela primeira vez, ostentando trouxas de ponta-cabeça, em meio a um ataque ao acampamento da Copa Mundial de Quadribol. Essa situação agrava-se ainda mais quando chegamos ao último livro da série, quando os nascidos trouxas são arrebatados, sequestrados, presos, torturados e muitas vezes mortos.

E temos Hermione, a heroína da série e a pessoa mais próxima do personagem principal que sofre tal tipo de perseguição. Mas isso tudo é relacionado a algo que Hermione não pode controlar, afinal ela simplesmente “nasceu” assim – não é uma escolha. Esse tipo de discriminação é o mesmo que ocorre fora dos livros em muitos países pelo mundo. É o que acontece no Brasil com a discriminação racial e o preconceito com os negros e xenofobia nacional típica do Sul e Sudeste contra o povo das regiões Norte e Nordeste. Essas injustiças e preconceitos são as mesmas que acontecem também na Índia, com seu sistema de castas, que impedem (ou pelo menos dificultam bastante) a miscigenação social. Em última instância, essa perseguição toda é a mesma que tivemos com Hitler e o nazismo, que causaram o holocausto (morte de milhões de judeus, negros, homossexuais e outras minorias étnicas e populacionais). E se prestarmos bem atenção, veremos que é precisamente o que ocorreu ao longo do ano que Voldemort e seu regime totalitário assumiram o poder em “Relíquias da Morte”.

Porém, não é como é a pessoa ao nascer, e sim o que ela se torna ao crescer, com as escolhas que faz (plagiando Dumbledore no final de “Câmara Secreta”) que definem quem você realmente é. E como disse Hagrid em sua cabana (com Rony arrotando lesmas ao fundo), E ainda não inventaram um feitiço que a nossa Mione não saiba fazer. E com maestria, por sinal, não é mesmo? Mas o mesmo deveria ser dito pelos negros, índios, judeus, islâmicos, homossexuais, dalits, etc. O quê dá a uma pessoa o direito de se achar melhor do que a outra, pela forma como ela nasceu? Sem dúvida existem pessoas, como a família Malfoy, que acreditam na soberania de sua raça, esquecendo completamente que somos todos humanos. Irmãos por genética e espécie.

Diferentemente do que ocorre com Hermione, mas ainda numa forma correlata, sempre me lembro de Remo Lupin, com seu “probleminha peludo” que conquistou a maioria dos corações pottermaníacos. Ele não “nasceu” lobisomem, mas adquiriu essa característica por causa de uma mordida do lobisomem Fenrir Greyback, que o infectou e mudou sua vida para sempre – portanto é outro que também não teve escolha. E essa situação também é vivida, de forma muito parecida pelas pessoas que sofrem de doenças como a AIDS, por exemplo. Uma característica que não lhe acompanha desde o seu nascimento, mas que é adquirida ao longo dos anos e que pode não ser revertida. Não há cura para a mordida de lobisomem (Madame Pomfrey em “Enigma do Príncipe”).

Do mesmo modo que em nosso mundo temos os portadores do HIV, escondendo sua condição por medo de serem rejeitados, nos livros de Rowling temos os lobisomens “bonzinhos” (já que claramente nota-se que há alguns, encabeçados pelo Greyback, que são deliberadamente maus), que tentam levar uma vida normal, muitas vezes com medo de assumirem suas condições verdadeiras por medo da reação das pessoas ao seu redor, como se elas fossem ser infectadas somente por dar amor e amizade a eles. Eu fora desprezado toda a minha vida adulta, incapaz de encontrar um trabalho remunerado porque sou o que sou (Lupin, em “Prisioneiro de Azkaban”). E isso os faz viver à margem da sociedade, uma vez que eles são excluídos de boa parte do convívio bruxo, principalmente pelo fato de não conseguirem esconder o tempo todo seus “probleminhas peludos”, já que eles precisam sair de circulação uma semana por mês, mesmo tomando a Poção de Acônito (conhecida como poção de Mata-cão).

Espero, de coração, que tenhamos pessoas em nosso mundo real, com a mesma compaixão e coragem (e humor também!) da nossa querida Tonks, que preferiu amar incondicionalmente uma pessoa, mesmo contrariando o senso-comum (e independentemente do trágico fim de ambos na série, não se pode negar que ela simplesmente decidiu deixar o seu lado humano e emocional falar mais alto). Também espero que tenhamos vários Weasleys, livres de preconceito e que aceitem criar laços com pessoas de diferentes camadas sociais, e até amar e se relacionarem com elas.

Marcio Fernandes se considera, verdadeiramente, um “homem de Dumbledore”.