Quem lê as colunas e as resenhas de Natallie Alcantara conhece seu prazer inestimável pela leitura. Nossa colunista é uma devoradora de livros como poucas.
Nossa colunista foi buscar as origens das mais variadas criaturas mágicas existentes no mundo bruxo retratado por J.K. Rowling. Na coluna deste domingo ela faz uso de seus conhecimentos literários para compará-los a Harry Potter e ao mundo que o rodeia.
Por Natallie Alcantara
O PROCESSO DE LEITURA
A leitura é um instrumento importante de conscientização e liberdade social. O autor, como um indivíduo que faz parte de um contexto social, ao criar sua obra literária, transpõe para seus personagens e história sua própria perspectiva cultural. E o leitor, na apreciação do texto literário, busca entender qual era o contexto em que o autor vivia e acaba desenvolvendo uma consciência crítica, o que leva a produção de conhecimento. Daí a validade de se estudar uma obra literária como fonte de informação.
No ramo da Biblioteconomia, existem estudos que categorizam a leitura em três categorias: informação, conhecimento e prazer. Como informação, a leitura atualiza; como conhecimento, relaciona-se a pesquisa e ao estudo; como prazer estético, leva o leitor de encontro aos gêneros literários. A informação é processada através de fontes e canais. Como fonte, pode ser classificada em primária (o material original), secundária (interpretações/avaliações das fontes primárias) ou terciária (algo como uma destilação e coleção de fontes primárias e secundárias).
Como a literatura é fonte de informação porque surge da intertextualidade, a série de J.K. Rowling se encaixa nas três categorias citadas acima, dependendo do uso que o leitor tenha em mente para sua leitura. Não raramente, afirma-se que um dos autores que influenciou Rowling foi J.R.R. Tolkien; no entanto, a própria autora já afirmou que, apesar de se sentir lisonjeada com a comparação, a única semelhança entre suas obras reside na criação de um mundo imaginário (ela não tentou escrever uma mitologia).
O gosto predominante pela fantasia; o fato de que a leitura (até mesmo dos textos ficcionais) causa reação no leitor quando vai de encontro aos seus anseios, está ligada às questões de gosto e aptidão para o consumo dos bens culturais são fatores que demonstram o entusiasmo por cada objeto relacionado à série Harry Potter e, mais ainda por cada novidade que Rowling resolva liberar (o que ficou muito bem exemplificado durante o lançamento do site Pottermore).
Atualmente, os livros e filmes já foram todos lançados, então os fãs estão buscando novas formas de se manter no universo potteriano. Felizmente, o entusiasmo também está voltado para a busca das obras que influenciaram o trabalho da autora, pois para construir seu universo fantástico, ele recorre a uma ampla gama de fontes. Ao criar seus personagens, lugares e coisas, Rowling faz muitas referências a contos de fadas, mitos e lendas, algumas vezes, mantendo a tradição (quando reproduz fielmente um elemento), outras vezes simplesmente remontando-o. Nada disso tira a graça da história, somente mostra o valor de sua capacidade inventiva.
A INTERTEXTUALIDADE COMO FONTE DE INFORMAÇÃO
As mitologias greco-romana, nórdica e céltica emprestam muitos seres mágicos a série Harry Potter, enquanto os animais mágicos fazem referência aos textos clássicos. Rowling se baseou na mitologia grega para, principalmente, dar nomes aos seus personagens. Como exemplo, pode ser citada Hermione, a colega nascida trouxa de Harry, que empresta seu nome da filha do rei Menelau e de Helena, a mulher mais bonita do mundo. Hermes, a coruja de Percy Weasley, empresta seu nome do deus mensageiro dos deuses gregos.
Outro animal retirado da mitologia grega e que mantém a mesma função ou característica é Fofo, o cão de três cabeças que protege a porta para se chegar à pedra filosofal. Fofo é semelhante a Cérbero, o cão de três cabeças protetor dos infernos. Com os duendes, criaturas citadas pela mitologia européia em geral como guardadores de tesouros, Rowling mantém a tradição, pois esses personagens continuam ligados ao ouro.
A pedra filosofal mantém a mesma característica de sua lenda original: seu elixir oferece a quem o bebe a capacidade de viver para sempre. Em Fawkes, a fênix de Dumbledore, está presente um animal que aparece nas culturas egípcia, grega e hindu. O animal fênix simboliza a imortalidade, pois morre e renasce das próprias cinzas. O nome escolhido pela autora, Fawkes, também é o nome do líder que tentou explodir o parlamento inglês em 1605 (sua tentativa fracassada passou a ser celebrada com fogueiras intituladas como pira da fênix). Nesta criatura mítica, Rowling empregou uma qualidade única: suas lágrimas têm o poder da cura.
Com dragões, a escritora mantém a tradição: são criaturas perigosas e poderosas. Com os elfos, no entanto, ela cria uma ruptura, pois na mitologia nórdica, são seres altos, belos e inteligentes, enquanto que no mundo bruxo de Rowling eles são baixinhos, de olhos esbugalhados e subservientes. No entanto, existem personagens que a autora utilizou de ambas as formas (rompendo e mantendo a tradição).
Semelhantes às mitológicas sereias, existem os sereianos, que constituem comunidades organizadas em águas profundas e que tem língua própria; e as veela, cuja beleza e poder de sedução remetem à capacidade das sereias de levar os marinheiros à morte. O cálice de fogo, objeto simples mas com poderes mágicos, remete ao cálice do Graal, artefato presente nos romances de cavalaria. A diferença entre eles está no fato de que enquanto o cálice do graal é o ponto final desejado, o cálice de fogo é o ponto de partida para o desenrolar da história.
Talvez a maior influência esteja presente na profecia, que funciona como catalisador em Harry Potter e no mito grego de Édipo e que decreta a cada um deles um antagonista (Voldemort e Laio, respectivamente). Ao tentar escapar do que foi enunciado, os personagens abrem brechas e caminhos para o cumprimento da profecia, ainda que de formas diferentes. As semelhanças entre Édipo e Harry também residem no fato de que ambos buscam a si mesmos, sendo movidos por um senso de justiça. No entanto, enquanto Édipo mata o “vilão” para que se cumpra a justiça que o guiava, seu final é trágico, mas Harry sobrevive para enfrentar Voldemort e sobrevive. A diferença maior entre os dois protagonistas.
Estas foram somente algumas influências entre o texto de Rowling e obras clássicas. Não é impossível, mas dissecar cada nuance da série para descobrir suas influências levaria muito tempo e demandaria muito esforço. Fica a dica para quem quiser se aprofundar no assunto. O que conta é que através da leitura de Harry Potter, o leitor pode identificar elementos variados, tornando a série uma excelente fonte de informação histórica e literária.
Natallie Alcantara sabe de cor os doze usos do sangue de dragão.