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Eros em Harry Potter

Nosso colunista Luis Nakajo continua nossa área de Crônicas com uma análise sobre o poder que Harry tem e o Lorde das Trevas desconhece: o amor.

Ao ler esse texto, você irá entender porque, sabiamente, Dumbledore disse que essa é a arma mais poderosa que Harry possui: a capacidade de amar, mesmo com todas as adversidades que a vida lhe trouxe.

Você pode conferir a coluna completa aqui.

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Eros em Harry Potter

Exuberante, o amor incita atitudes corajosas, sacrifícios e obras de arte.

por Luis Nakajo

Harry Potter, diz o finado Dumbledore, se diferencia do Lorde das Trevas em sua capacidade de amar, a “arma” que o velho mago insiste ser a vantagem de Harry em sua luta contra Aquele Que Não Deve Ser Nomeado. A profecia, fatal a Voldemort, cita “poderes que o Lorde não conhece” e o que está por trás destes poderes é, exatamente, o Amor de que tanto se fala nos livros –um poder tão misterioso quanto os sacrifícios e atitudes tomadas pelas mais diversas personagens ao longo da série.

Por amor, Lilian se sacrifica por seu filho; por amor, Dumbledore vai pelos ares; por amor, Sirius Black acaba atravessando o Véu do Departamento dos Mistérios; podemos dizer que, também por amor, Hagrid corre o risco de ir para a prisão, ao criar aranhas gigantes em armários; e –sim!- por amor, Tia Petúnia mantém um sobrinho pra lá de indesejado em sua casa.

Para Voldemort –e para qualquer um que olhe as situações com frieza-, nenhuma das atitudes acima faz qualquer sentido. Se fôssemos puramente utilitários, se pensássemos só no custo-benefício de nossas ações, qualquer ato destes seria pura asneira. Mas o amor, esta força estranha, nos propele a atos inexplicáveis, aos quais chamamos de virtuosos. O Amor nos empurra, nos incita a fazer aquilo que não faz sentido, não é prático –ou que parece demasiado difícil realizar. Mas que (coisa boa) nos traz felicidade, um senso de sermos maiores que nossos corpos (“Bigger than my body”, diria John Mayer).

O Amor, pela dor e pela grandeza que provoca, separa os homens dos animais. Podemos ser submetidos à mortalidade da carne, mas também temos nossos lances de grandiosidade, que tornam a vida “vivível”, não apenas sobrevivida.

É este poder, que parece tão fraco se comparado ao Avada Kedavra, que forma guerreiros, artistas universais e heróis de franquias multimilionárias.

DÁIMONS E O BANQUETE

Quando Dumbledore deixou claro, n’O Enigma do Príncipe, que “o poder que o Lorde não conhece” é o Amor, me senti exatamente como Harry: estupefato. Depois de um pouquinho de sorte, porém, tropecei num livro que explicou Dumbledore brilhantemente: O Banquete, de Platão.

No banquete narrado por Platão, homens célebres e eloqüentes discursam sobre o amor (ou Eros, para eles). Mas quem “rouba a cena”, mesmo, é Sócrates, que chega com sua modéstia e palavras simples para derrubar estereótipos.

Algumas definições são importantes, antes de passarmos à leitura da série sob a luz platônico-socrática. A visão que Sócrates tem do Amor é a seguinte: considera o Amor um intermediário entre os deuses e os homens –um dáimon-, que origina no homem o desejo de ser mais que mero animal, mais que matéria. O Amor nos situa entre o mundo físico e o mundo espiritual (ou mundo das idéias, como Platão gostaria).

Este dáimon, filho da Penúria e do Engenho, faz a ponte entre o mundo ideal e o mundo material, o qual Platão considera uma consolação ridícula, uma cópia mal feita do mundo das idéias puras. Para Platão, esta proximidade dos mortais para com os deuses –que nos consola a penúria da condição biológica- é alcançada através do Belo e do Bom. Quanto mais ideal, mais virtuoso for o objeto do amor de um homem, mais próximo dos deuses ele estará. E mais próximo ainda de alcançar o que todo homem almeja: felicidade (eudaimonia).
O Belo, por sua vez, podemos amar numa pessoa, ou na idéia de Beleza, pura e simples. Platão prefere a última, por ser mais filosófica (e o filósofo, para Platão, nada mais é que um dáimon entre os homens, a encarnação do Amor pelo conhecimento… algo assim como um Dumbledore, sabem?)

Assim, movidos pelo amor, geramos algo no Belo, utilizando o engenho que o Amor herdou de seu pai. Este engenho pode ser chamado de inspiração poética, de bravura, de inteligência, perspicácia, rapidez. O amor por trás de todos estes aprimoramentos do ser humano é o verdadeiro protagonista da série de Joanne Rowling.

IMORTALIDADE NO AMOR

O Amor, resumindo bastante, nada mais é que o tônico que nos impele a ser imortais. Só que esta imortalidade não é construída por Horcruxes ou coisitas do gênero. A imortalidade socrática é a imortalidade da substituição: geramos no Belo. Filhos, poemas, leis e grandes obras, de modo a “gravar” em matéria a Beleza e a Bondade que o homem conquistou em vida. Gerar algo novo para ficar no lugar do velho (de si mesmo), que perece, vira pó. Assim, gera-se a imortalidade dos grandes poetas, dos grandes homens e mulheres.

Quando Lílian e Tiago se sacrificam por seu filho, é porque tentam proteger, ao mesmo tempo, a si mesmos, a continuidade de suas vidas, através de Harry. A eternidade de Lílian e Tiago é Harry Potter, assim como a eternidade dos pais são seus filhos, seus netos, suas ações marcantes, suas obras de impacto. A obra máxima do amor entre os dois (junção carnal e junção de espírito) é o bebê que o Lorde pretendia explodir. E, ao dar sua vida por Harry, seus pais lhe legaram mais que o sangue: lhe confiaram também a missão de uma vida toda: lutar pelo que achavam justo.

Nascido como fruto do amor, e salvo pelo sacrifício amoroso, Harry Potter realmente tem poderes que o Lorde não conhece –e que escolheu não conhecer, por considerá-lo inútil. Quando a Avada Kedavra foi lançada, encontrou a resistência de uma “magia antiga”, tão antiga quanto o homem. Esta magia era alimentada, originada e mantida pelo Amor, pelo sacrifício último de Lílian.

Na série de Rowling, este sacrifício deixa marcas mais explícitas e protege de um feitiço da morte. Talvez seja a maneira de Rowling deixar bem claro que o Amor tem o seu poder exatamente no momento de maior dor: quando o inimigo já parece vitorioso.

OS EFEITOS DO AMOR

Um exemplo bem interessante para ilustrar o poder do amor é Aquiles, o herói da Guerra de Tróia. O que move um semi-deus à guerra? Ele mesmo diz: o desejo de ser imortal, de gravar seu nome na história (em outras palavras, desejo de ser mais que um homem qualquer).

Aquiles assusta, por ser imune às lanças dos oponentes (seu único ponto desprotegido é o calcanhar). Aquiles está entre aqueles que ama, e, por eles, derruba exércitos. Mas, sarcasticamente, é quando assassinam aquele que mais ama, Pátroclo, que Aquiles se torna ainda mais poderoso e mortífero: ele chega ao ponto de amarrar o corpo do assassino de Pátroclo a um cavalo, para depois arrastar o cadáver por quilômetros, desfigurando-o. Dizem as más línguas que Aquiles e Pátroclo eram bem mais que primos… eram amantes…
O que podemos enxergar na história de Harry é quase o mesmo: ter pessoas que ele ama assassinadas torna a “vingança” um imperativo. Derrotar Voldemort vira algo pessoal: mesmo que não fosse O Escolhido, Harry nunca se entregaria a Voldemort num combate face-a-face (o que também era típico de Aquiles).

O Amor, reparem, funciona como alimento às almas que desejam ultrapassar a condição pequena do ser humano –sabemos muito bem que não somos perfeitos, mas atos como ir à guerra, escrever poemas melosos e defender a honra dos mortos são feitos com todo o nosso ardor, como se quiséssemos alcançar esta perfeição, esta divindade (= felicidade).

Forçando um pouco mais o paralelo entre Aquiles e Harry, podemos enxergar dois amigos a seu lado assim como Pátroclo ao lado do herói grego. Hermione e Rony são companheiros numa guerra –e por eles, Harry tentará derrubar exércitos.

O EROS E A ARETÉ DO GUERREIRO

Harry, como todo herói, parte de seu mundinho simples para uma luta, entra para a guerra –e entra com vontade. O que o move é o amor. Este impulso audacioso é o Amor, que levaria ao que os gregos chamam de areté, a qualidade do homem guerreiro, nobre, que alcança a qualidade total –e que prefere morrer no campo de batalha a se entregar.

Ao contrário do que fazem os Comensais da Morte –salvar as próprias peles quando a situação fica preta-, um guerreiro movido pelo eros grego não se deixa intimidar e vai até o fim em sua luta. Um poder que o Lorde das Trevas não conhece: ele se preocupa, acima de tudo, com sua condição –que se danem os outros. Dotado de mentalidade maquiavélica, Voldemort usa os outros como meio para chegar a um fim determinado. O que ele não espera é que alguém, baseado no amor, faça o contrário: pense primeiro no outro do que em seus fins e objetivos. Para o Lorde, isto é tolice – para ele “não há bem ou mal, apenas o poder”.

Sob este ponto de vista, Dumbledore está coberto de razão quando diz, n’O Enigma do Príncipe, que Voldemort pode ter avançado em algumas vertentes de magia, mas que, “em outras, permanece dolorosamente ignorante”. Não considerar as loucuras que o amor pode insuflar nos homens (veja Merope, veja os Potter, veja Hagrid e seus bichinhos peludos) é uma grande desvantagem para qualquer pessoa: Harry & cia ganham o efeito surpresa. Quem subestima o poder do amor contará sempre com imprevistos e surpresas desagradáveis (como feitiços que saem contra o feiticeiro).

AMOR CRISTÃO E MISERICÓRDIA

Outra das ironias do amor é que ele nos impulsiona à misericórdia, em vez da vingança sanguinolenta que Aquiles demonstra na Guerra de Tróia. Isto se explica: Aquiles representa uma era anterior à cristã, que traz consigo um ideal de amor que nos influencia intensamente até hoje. Em vez do amor de guerreiro, temos a emergência do amor de mártir, o amor dos mansos de coração.

Enxergamos isto em Harry quando Rabicho tem sua vida poupada: Harry não quer que os melhores amigos de seus pais se tornem assassinos por causa de alguém que não merece.

Mas a imagem do santo mártir é bem mais dramática: o homem, que para se aproximar do mundo divino (= mundo da felicidade), se entrega aos sofrimentos desta vida e acaba esquartejado, crucificado ou enforcado por algum agente “do mal”, geralmente um militar a mando de Roma.

Os mártires amam tanto a Deus –e, por extensão, os homens, seus irmãos- que se entregam à dor e negam os prazeres que este mundo oferece. Quando nos privamos dos prazeres e do conforto para acabarmos com algo desconfortável ou para salvarmos alguém, usamos da mesma mentalidade que a do mártir.

Em parte, é o que ocorre com Harry, quando ele assume para si a responsabilidade sobre Voldemort. Ele coloca seu bem estar em risco (um lance “tolo”, diria Voldemort), porque sofrer um pouco para derrotar Voldie não é lá uma barganha sem sentido. Dumbledore disse algo parecido, n’O Enigma do Príncipe, quando graceja sobre a mão que perdeu enquanto destruía um sétimo da alma do lordezinho das trevas.

Podemos, portanto, dizer que Harry oscila entre os dois comportamentos: é corajoso o suficiente para se lançar à caça às Horcruxes e enfrentar o desconhecido para honrar as pessoas que ama (no sentido da areté grega); mas duvido que consiga matar alguém a sangue frio (no sentido passivo do manso e resistente mártir).

A IMORTALIDADE DE VOLDEMORT

Durante toda sua vida, Lorde Voldemort perseguiu a imortalidade. Mas não a imortalidade que Platão e Sócrates consideram a “boa imortalidade”, aquela que se alcança quando deixamos obras (filhos ou poemas) em nosso lugar, a hereditariedade movida pelo engenho criativo ou biológico.

Voldemort quer mais. Quer ser mais que mero homem.

Quer ele mesmo se tornar sua obra máxima. Deste ponto de vista, ele se transforma num deus, no sentido grego, por ser imortal. Ele próprio diz para Frank Brice, no começo d’O Cálice de Fogo: “Eu não sou homem; sou muito mais!”. Mas não um deus completo, se olharmos com um pouco mais de atenção. Voldemort pode perder o status de imortal se suas Horcruxes forem destruídas.

É um deus artificial. Do ponto de vista platônico, ademais, ele não detém nem o Belo nem o Bom. Na verdade, Voldie foge destes ideais, porque os considera “coisa de gente fraca”, que não enxerga que “o poder é o que realmente importa”.

Suas obras são grandiosas, marcaram seu nome na história –mas assim que for derrotado, será forçosamente esquecido, posto no baú de diabruras que queremos enterrar, nunca mais lembrar (algo parecido acontece com nós trouxas e o Holocausto nazista).

VOLDIENSTEIN

O que enxergamos ao longo das sucessivas transformações de Lorde Voldemort é a perda de sua condição humana: Voldemort se tornou, virtualmente, imortal. Assim, ele está livre das preocupações quanto à sua sobrevivência (não participa da penúria da vida humana). E pouco se importa em se aproximar do Belo e do Bom –ou de executar atos que elevem sua condição, como os humanos normais.

O Eros, para Voldemort, é besteirinha, coisa boba, descartável. Pois, vejam bem, do ponto de vista platônico, ele não lhe serve de nada: Voldemort já alcançou um dos estados da divindade: a imortalidade. Ele é sua própria obra –e seu próprio “deus” superpoderoso. Como ele se engana… por deixar de lado a mortalidade, deixa também de lado a urgência e o sabor de deixar para trás a obra de uma vida toda.

Pois, como dizia um sábio filósofo de barba branca, a morte é apenas a próxima grande aventura.

Eis o valor de uma alma por inteiro.

Luis Nakajo é estudante da ECA-USP