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J.K. Rowling responde pergunta sobre personagens de Morte Súbita

O Goodreads, em celebração ao lançamento da edição em brochura de Morte Súbita, sorteou cinco entre mais de 1500 perguntas que seus membros poderiam fazer à autora J.K. Rowling. Dentre as cinco sorteadas, os membros escolheram a pergunta que foi feita à autora.

A ideia mais assustadora que tive teve origem na sua exposição corajosa da feiúra e da fragilidade da natureza humana (é muito fácil, afinal, escrever sobre o potencial e a beleza da nossa natureza). O quão importante é para você que esse tipo de realidade exista nos seus personagens? E se você esperava mostrar isso, você tem algum objetivo em mente, em termos de como podemos melhorar ou piorar o que há de pior na humanidade?
Anne Gunden, membro do Goodreads

A tradução da resposta de Jo, que gostou muito da pergunta, pode ser conferida na extensão clicando neste link.

J.K. ROWLING
Autora responde pergunta sobre Morte Súbita
Goodreads ~ 25 de Julho de 2013
Tradução: Mari Trevisan

Essa é uma ótima pergunta e fico feliz que tenha sido escolhida! Sim, foi muito importante para mim que meus personagens se sentissem como pessoas reais, com seus motivos confusos e vidas complicadas. Thomas Hardy, um escritor que sabia muito sobre o desespero da pobreza e sobre a quietude da vida rural, escreveu: ‘Se há um caminho para a melhora, isso exige um olhar profundo para o que há de pior’.

Vejo que a maioria dos personagens de Morte Súbita estão presos pelas circunstâncias, por suas escolhas de vida ou uma mistura de ambos e tenho uma compaixão especial por todos os cinco adolescentes – Andrew, Bola, Sukhvinder, Gaia e Krystal – que estão todos sofrendo do que um leitor astuto chamou de ‘criação súbita’.

Uma das coisas em que pensei muito enquanto escrevia foi o quão difícil é mudar sua vida mesmo quando adulto, embora algumas pessoas enfrentem muito mais obstáculos ao fazer isso do que outras. Gavin Hughes, por exemplo (um personagem pelo qual posso reunir muito pouca afeição ou compaixão), está bloqueado apenas pela sua timidez e inércia. Acho que sua total falta de comprometimento e introversão são insensíveis e devo admitir que (tendo meu lado baixo como a próxima pessoa) até gosto da influência que Samantha exerce sobre ele. Então temos Kay, que mudou sua vida drasticamente ao se mudar para ficar perto do namorado desinteressado; Samantha, cuja gravidez inesperada mudou sua vida irrevogavelmente e, por fim, Terri Weedon. Ela era tão nova quando foi machucada e está tão viciada, presa entre pessoas que usam e abusam dela, que quase todo processo de pensamento dela, seu estado emocional e suas circunstâncias externas teriam que ser transformadas para alterar o curso de sua vida.

Os dois principais temas do romance são hipocrisia e responsabilidade. Eu quis mostrar como os humanos podem ter sentimentos feios dos quais preferem não se dar conta; como nós todos somos apanhados em nossos próprios problemas e limitados pelas nossas experiências de vida. Julgar alguém, declará-lo abaixo do padrão, concluir que seus infortúnios são devidos a falhas de caráter inerentes, pode ser um modo de melhorar nossa própria auto-estima, porque nosso sucesso comparado e felicidade não podem ser sorte ou azar, mas sim recompensas por condutas superiores e talentos.

Porém, nada disso deve fazer-nos parar de fazer coisas maravilhosas; a perfeição não é necessária para fazer uma diferença real na vida das pessoas. Barry Fairbrother não era um santo aos olhos de sua esposa afligida; ele pode ter se esticado muito em sua determinação em fazer a diferença na vida das pessoas que estão presas no mesmo tipo de infância que ele escapou, mas se ele sobreviveu, Krystal e Robbie também teriam sobrevivido.

Você perguntou sobre sair do nosso estado natural para mudar o mundo e sinto que muitos personagens fazem isso no final do livro. Colin mostra muita coragem, compaixão e perdão por seu filho muito debilitado; ele se torna a única fonte de conforto de Bola. Kay enfrentou seus próprios motivos ao se mudar para Pagford, resolvida a reparar o dano e se reconciliar com sua filha. Parminder reconheceu a coragem e o trauma da filha em qual ela projetou toda a sua insatisfação e insegurança. Talvez o mais importante de tudo seja Samantha Mollison, que esteve tão descontente ao longo da história, que criticou todas as tentativas do governo de fazer alguma mudança, se voluntariou para fazer parte do conselho local. Somos deixados com a impressão de que ela não vai votar com seu marido; que ela e Colin Wall vão lutar para manter a clínica de viciados aberta e evitar mais calamidades relacionadas às drogas.

A terrível constatação de que ela poderia ter salvado a vida de um garotinho tirou Samantha de sua complacência e ela quer ser absorvida em ‘algo maior que ela mesma’. Suponho que essa é minha resposta real à segunda parte de sua pergunta: nós precisamos ser absorvidos em algo maior que nós mesmos. Isso não quer dizer que todos devem ir para o parlamento (Deus proíba); é algo mais sutil do que isso. Se tomarmos decisões para os pequenos problemas, cientes de que nossas ações podem ter um grande impacto nos outros, vamos começar a fazer a diferença. Se escolhermos entender o ponto de vista da outra pessoa, se fizermos o esforço de entender antes de nos atropelarmos para fazer um julgamento, todos os diferentes pontos de vista podem fica aparentes para nós. Isso pode parecer muito pouco, mas os efeitos poderiam mudar o mundo e muitas pessoas prefeririam não fazer tanto. É confortável e seguro aderir a um ponto de vista e não mudar (eu me incluo em tudo que foi escrito aqui, por falar nisso!).

Em uma análise final, Morte Súbita foi construído de modo que, quando três personagens passam perto de um menino pequeno e desacompanhado que está transitando entre um rio perigoso e uma estrada, nós entendemos porque nenhum deles parou para perguntar porque o menino estava sozinho ou para cuidar dele. Escolhi cada um desses personagens com cuidado.

Gavin representa a apatia pura que é necessária (na famosa citação) para o mal florescer. Ele nem ao menos se lembra de ter visto Robbie Weedon depois de ouvir dizer que ele afundou, nem se preocupa com o pensamento de que deve ter estado muito perto do menino em seus últimos momentos.

Samantha representa a pressa dos problemas diários que impede basicamente pessoas bem-intencionadas de se concentrar em problemas que não as afetam diretamente. Depois ela admite ter visto Robbie e sente um grande remorso por não ter agido. Samantha também é honesta o suficiente para admitir para si mesma que a aparência de Robbie a fez ter menos vontade de ajudá-lo.

Shirley representa um nível de ingratidão que se detém de sua própria insegurança, pois seu passado não é tão distante do dos Weedons. Acho que é muito comum esse tipo de pessoa estar entre as mais críticas e julgadoras. Ela – e não Howard – é o verdadeiro oposto de Barry Fairbrother no romance. Negando suas origens e castigando aqueles que a fazem lembrar delas, ela é a imagem negativa do homem que admite de onde veio e volta para tentar ajudar os outros. Shirley não só vê Robbie e o ignora enquanto luta com seus próprios problemas, que ela não sente remorso depois, jogando a culpa da morte da criança nos outros.

Uma pergunta interessante é se Howard teria parado para ajudar Robbie. Eu ficaria maravilhada em ouvir o que os leitores pensam, mas tenho certeza de que ele o teria feito. Howard é um homem feliz, o que faz diferença; pessoas felizes são geralmente mais generosas que as infelizes. Além disso, Howard sabe apreciar sofrimento e privação quando estão personalizados. Por exemplo, ele dá crédito a Cath Weedon, a qual ele reconhece que teve uma vida difícil e que fez o melhor que podia apesar das desvantagens. Confrontado com um menininho sujo perambulando ao lado do rio, posso imaginar Howard pegando-o pela mão e levando-o à delegacia. Embora eu discorde de Howard em muitos assuntos, ele tem seu código, e não acho que falta decência em sua esposa.

Essa foi uma resposta discursiva, mas a pergunta me estimulou!