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Quem tem medo de fantasmas?

Quem tem medo de fantasmas? Quantas vezes, quando crianças, os seres de outro mundo não nos tiraram o sono durante longas noites? Isso, pelo menos, até que conhecêssemos Harry Potter e o Nick Quase-Sem-Cabeça.

Neste domingo de Páscoa, eu te pergunto: você acredita em fantasmas? Enquanto reflete sobre a questão, leia a coluna que escrevi sobre o tema e não deixe de comentar!

Feliz Páscoa a todos! E não se esqueçam de guardar um pouco de chocolate caso chegue um dementador!

Por Luiz Guilherme Boneto

Você acredita em fantasmas?

Reza a lenda que os seres do além estão entre nós e são capazes de nos ver. Há quem diga ser possível falar com fantasmas, vê-los pelos cantos e até mesmo manter uma relação de fraterna amizade com eles. A quem se interessar, existe uma extensa literatura a respeito de mediunidade, contudo, não a conheço, e também nunca vi um fantasma. Não posso, pois, atestar a veracidade de nada, embora respeite a crença das pessoas em qualquer coisa que seja; acredito que a livre profissão de qualquer fé, com respeito e dignidade – e aqui não me refiro somente à fé religiosa –, é uma belíssima característica de um povo verdadeiramente livre.

Mas voltando ao assunto, em Harry Potter, os fantasmas existem e são muito participativos. Não há espaço para que os alunos ditem suas crenças: em Hogwarts, cada Casa tem o seu fantasma-residente, e todos eles podem ser vistos pela escola a qualquer hora do dia. Sua convivência com os estudantes é normal, e em muitos casos, amigável. Os fantasmas têm também sentimentos humanos: sentem raiva, inveja, ciúmes e até mesmo saudades de prazeres muito mundanos, como comer. Tais sensações são ilustradas especialmente na figura do Cavalheiro Sir Nicolas de Mimsy-Porpington, vulgo Nick Quase Sem-Cabeça. Nick perdeu a vida com um golpe de machado cego no pescoço, e poucos centímetros de pele mantêm a cabeça presa ao seu corpo espectral. O fantasma acha isso péssimo, contudo: a cabeça presa lhe impede diretamente de participar do clube dos sem-cabeça, embora lhe sobrem tentativas de ingressar na associação. Para o cavalheiro, uma cabeça completamente separada do corpo seria de melhor uso, vejam só.

Há ainda Pirraça, o poltergeist, um dos personagens mais divertidos da história toda. Sua presença, pode-se dizer, serve tão somente para ilustrar determinadas situações. Pirraça faz de um tudo para infernizar a quem quer que seja, embora nutra algum respeito – ou seria temor? – pelos professores, exceto Lupin, a quem chama, por razões muito pessoais, de “louco lobo”. Enquanto diretor, e na qualidade de bruxo mais poderoso do mundo, Dumbledore naturalmente poderia ter expulsado o poltergeist da escola, porém não o fazia, talvez para justamente manter a coisa toda mais divertida. Muito compreensível, especialmente quando se relê a passagem da saída de Dolores Umbridge de Hogwarts: Pirraça lidera, às bengaladas, o cortejo de expulsão.

Os fantasmas em Harry Potter, contudo, não são apenas diversão. Já na conclusão da saga, quando o trio finaliza as buscas pelas horcruxes perdidas, a Dama Cinzenta, fantasma da Torre da Corvinal, é de fundamental ajuda. Quem leu o trecho da história em questão sabe bem: a Dama Cinzenta não tem absolutamente nada de divertida, nem a história que ela tinha para contar. Ainda assim, relutantemente, ela ajuda Harry a concluir sua empreitada.

De igual modo, quando Sirius Black morre, Harry procura Nick Quase Sem-Cabeça para questionar-lhe sobre sua condição de fantasma. Sem qualquer sombra de divertimento, Nick lhe conta, numa das passagens mais tristes da história, que voltar como um espectro não seria a escolha de Sirius. Que ele optaria por seguir. O próprio Harry é obrigado a fazer escolha parecida: ir em frente ou voltar, para seguir lutando contra Voldemort. Naturalmente Harry não voltou como um fantasma, porém as escolhas, a seu modo, se assemelham. Trata-se de um outro trecho muito marcante da saga, inclusive no filme, quando Dumbledore, já morto, se encontra com o protagonista e lhe dá a opção de regressar e seguir lutando, ou tomar um “trem” e seguir “adiante”.

As passagens nas quais Jo Rowling expõe claramente a vida após a morte, conforme mencionei ainda há pouco, são carregadas de subjetividade. Tanto para os trouxas quanto para os bruxos, a morte segue permanecendo um mistério; para eles, há a possibilidade de voltar numa forma de espectro, quase indigna, privada e desejosa das sensações humanas. O que há do lado de lá, entretanto, permanece sendo um mistério. Na estação, já no encerramento da série, Harry poderia ter seguido “adiante” ao lado de Dumbledore, para talvez reencontrar seus pais e antepassados, rever Sirius, Lupin, Olho-Tonto e tantas outras pessoas queridas. Num ato de bravura, contudo, Harry Potter escolhe voltar e continuar a lutar. E os desdobramentos, como bem sabemos, foram muito felizes.

Essa caracterização à la J.K. Rowling dos fantasmas é muito típica da autora. Sabe-se que, quando a série começou, a maior parte de seus leitores era composta por jovens no início da adolescência. Sabe-se também que a pré-adolescência é um período difícil, no qual sobram os medos da infância, misturados à convencional vontade de provar-se um quase-adulto. O medo de espíritos do além-túmulo é logicamente um deles, mas ora: a crença em fantasmas é puramente fantasiosa. Se por um lado há um mundo de filmes de terror a mostrar seres sanguinários e horripilantes à espreita, por outro há J.K. Rowling, que pinta seus fantasmas num panorama natural e até mesmo divertido. Se eu sou uma criança e tenho fantasias, posso simplesmente escolher em qual desses “lados” quero acreditar, e no meu caso, teria uma escolha certa sem necessitar maiores reflexões. Naturalmente há poucos potterheads que gostariam de receber a Dama Cinzenta ou o Nick Quase Sem-Cabeça para uma visita noturna, contudo, em Hogwarts a convivência seria não só harmoniosa como também desejada. Coisas que Harry Potter provoca em seus fãs.

Vou contar só pra vocês: o Barão Sangrento me dá calafrios até hoje.