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Entrevista de J.K. Rowling à revista SPIEGEL traduzida

A revista SPIEGEL publicou no fim do mês passado uma entrevista concedida pela escritora J.K. Rowling, na qual ela fala sobre seu novo livro, os temas abordados na obra e também sobre a série ‘Harry Potter‘.

Você pôde ler uma prévia da matéria aqui no Ish há alguns dias, e agora já pode lê-la completamente traduzida na íntegra. Alertamos que há spoiler na entrevista.

O Ish continua trabalhando para trazer todo o material de divulgação de The Casual Vacancy para você. Continue de olho!

THE CASUAL VACANCY
“Eu realmente esgotei a magia”

Revista SPIEGEL ~ Claudia Voigt
27 de setembro de 2012
Tradução: Renato Ritto e Mari Trevisan
Revisão: Evandro Lira e Renato Ritto

O primeiro romance de J.K.Rowling para adultos, “The Casual Vacancy”, foi publicado na quinta-feira. Na entrevista da SPIEGEL, a autora da lista dos mais vendidos fala sobre sua vida após Harry Potter, descreve sua paranoia sobre perder tudo o que ganhou e dispensa sugestões de veteranos.

Não são nada além de cópias comuns, uma pilha de altura próxima a 3 centímetros, mas uma grande negociação de sigilo foi feita por causa delas. À noite, as páginas foram colocadas em um cofre na Ullstein Verlag, em Berlim.

Quando a SPIEGEL solicitou uma entrevista com J.K.Rowling sobre a ocasião de seu primeiro romance pós-Harry Potter, não estava claro se a autora iria deixar jornalistas lerem o livro antes de sua publicação em 27 de Setembro. Mas lá estavam colocadas as 576 páginas de “The Casual Vacancy” (que está sendo publicado na Alemanha como “Ein Plötzlicher Todesfall” [A Morte Súbita]) em uma sala de conferências ensolarada nos escritórios da Ullstein.

O primeiro romance de Rowling para adultos começa com o personagem Barry Fairbrother, que sai para comer com sua esposa para celebrar o aniversário de casamento deles. Mas Fairbrother não é, na verdade, o herói – ele morre em consequência de um aneurisma na terceira página. Vivia com sua família em Pagford, uma cidade aparentemente tranquila no oeste da Inglaterra. Era um alpinista social, que crescera em um conjunto habitacional público vizinho, Fields, e, antes de sua morte, lutou para ter a certeza de que este iria continuar pertencendo à Pagford.

Rowling mostra um panorama social de uma pequena cidade inglesa. Ela descreve uma família bem-sucedida de médicos indianos; um pai que bate na mulher e nas crianças em ambiente privado; um porta-voz da política que é tão poderoso quanto gordo; e quatro adolescentes que se rebelaram contra o conservadorismo da auto-satisfação do mundo da classe média.

Atualmente, Rowling, 47 anos, é uma das mulheres mais ricas da Grã-Bretanha. Seus sete volumes da série Harry Potter foram traduzidos para 72 línguas e venderam cerca de 450 milhões de cópias em todo o mundo. Sua fortuna é estimada em algo próximo de 700 milhões de euros (900 milhões de dólares), e ela disse ter doado 120 milhões de euros para a caridade nos últimos anos.

Quando publicou o primeiro livro de Harry Potter, em 1997, Rowling estava vivendo como mãe solteira com problemas financeiros em Edimburgo. Ela ainda vive lá, e realiza essa entrevista em seu escritório no centro da cidade. É pontual e amigável, e em geral não está em seus modos não se comportar como uma estrela.

SPIEGEL: Sra. Rowling, não há qualquer magia ou feitiçaria em seu romance. Será que você sente falta disso?
Rowling: Acho que realmente esgotei a magia. Foi muito divertido, mas coloquei tudo isso para trás por enquanto. Se há qualquer semelhança entre Harry Potter e meu novo romance, é o meu interesse pelos personagens.

SPIEGEL: Depois do último livro de Harry Potter, alguma vez passou pela sua cabeça parar de escrever?
Rowling: Não, nunca nem considerei isso. Estive escrevendo durante toda a minha vida, e sempre escreverei. Mas haviam momentos que eu dizia a mim mesma que não precisaria necessariamente ter que publicar mais qualquer coisa. O sucesso de Harry Potter me deu muita liberdade. Posso pagar minhas contas, e não tenho que provar mais nada para ninguém.

SPIEGEL: Mas toda essa liberdade também não pode levar a um bloqueio de escrita?
Rowling: Eu gosto muito de escrever para isso acontecer. O problema maior é que, pelo fato de Harry Potter vir junto com um monte de responsabilidades relacionadas a negócios, sou capaz de escrever com menos frequência do que gostaria. Além disso, tenho três filhos, embora esteja acostumada a trabalhar perto dos meus filhos. Ontem, por exemplo, tive um dia de escrita maravilhoso. Aprontei meus filhos para a escola, e uma vez que meu marido estava com eles fora de casa, fiz café da manhã para mim mesma na cozinha. Ainda de pijamas, levei o café da manhã para a cama comigo, peguei o notebook e passei quatro horas trabalhando na cama. Foi delicioso.

SPIEGEL: Porque decidiu escrever para adultos depois de Harry Potter?
Rowling: Eu não penso sobre para qual audiência são os meus livros. Eu simplesmente tive a ideia de escrever um romance sobre uma eleição política em uma cidade pequena porque acredito que isso permita que você fale muito sobre sociedade e diferentes classes sociais. Estava pensando em romances ingleses do século dezenove na época.

SPIEGEL: “The Casual Vacancy” se passa em uma cidade fictícia do oeste da Inglaterra chamada Pagford. Barry Fairbrother, um membro respeitado do conselho da cidade, morre no começo do livro. Sua morte desencadeia uma luta em Pagford sobre quem irá substituí-lo. Você entrelaça a história de mais de 20 personagens no decorrer do romance. Porque a coisa toda se passa em uma cidade pequena?
Rowling: Primeiro de tudo, porque eu cresci em uma cidade muito parecida com Pagford e conheço muito de como a vida é por lá. E para um autor, um mundo pequeno e controlável como aquele dá a chance de examinar cuidadosamente como as ações dos indivíduos afetam a vida dos outros. Secretamente somos muito mais ridículos do que deixamos transparecer. Isso me interessou, assim como as dependências e vícios que toleramos para desempenhar adequadamente nossos papéis sociais. Um dos personagens é um pai e médico, assim como um workaholic. E depois há uma esposa respeitada que bebe muito para o seu próprio bem, assim como dois personagens que encontram o conforto na comida. Estes são todos os vícios que silenciosamente aceitamos, apesar dos relatos ocasionais de que bebemos muito, em média, ou que as pessoas estão ficando muito gordas. E, no entanto, estes vícios têm um efeito destrutivo.

SPIEGEL: A hipocrisia da classe média é um tema importante do livro. O que você achou interessante nisso?
Rowling: Uma tendência desagradável da interação humana é que vemos o outro com cada vez menos e menos empatia. Ao invés, julgamos os outros a quem realmente não deveríamos julgar, porque nós os conhecemos muito pouco. Há um sentimento de que nunca iremos afundar tanto como alguns vizinhos ou uma pessoa a quem nos sentimos superiores para aumentar nossa autoestima. Acredito que a falta de empatia está por trás de muitos problemas, e acredito que está corrompendo nossa sociedade. Na Grã-Bretanha, há um declínio constante na vontade de ser verdadeiramente generoso, e com isso eu não quero dizer monetariamente generoso, mas amigável e simpático com os outros.

SPIEGEL: O que está causando isto?
Rowling: Em tempos economicamente difíceis, as pessoas se tornam menos dispostas a ajudar os outros. Não são tempos bons para empatia.

SPIEGEL: A classe média do seu romance não conduz uma vida feliz tampouco.
Rowling: Havia vezes que achava deprimente escrever o livro. Aconteceu de ser um romance sobre a autodestruição, que é o porquê de problemas desconhecidos desempenharem um papel tão grande nele, como fazem os pontos cegos em nossa autoconsciência. No entanto, alguns personagens no romance estão também firmemente convencidos de que estão fazendo tudo certo, o que por sua vez também é muito divertido. Há muita competição ambiciosa e hipocrisia na classe média, o que a torna um ambiente bastante fértil para um escritor.

SPIEGEL: Os personagens mais gostáveis do livro são quatro adolescentes, que têm relações praticamente silenciosas com seus pais e cuja vida em casa é cheia de agressividade e destrutividade. Você é assim tão pessimista sobre a relação entre as gerações?
Rowling: Nunca recomendaria meu romance como um guia para os pais. Mas acontece que vivemos em uma época muita agitada e apressada, e acredito que muitos pais estão muito envolvidos consigo mesmos.

SPIEGEL: Como mãe de três crianças, assim como autora dos livros mais bem-sucedidos para jovens, o que você diria para os pais se tornarem bons?
Rowling: Eu posso responder melhor sua pergunta como uma professora formada: ouvir. Eu nunca diria que faço tudo certo – é mais certo que não faço – e adolescentes podem ser muito insuportáveis, algumas vezes. Mas os problemas começam assim que a comunicação para. Essa tem sido a minha experiência. A coisa mais importante e mais difícil é ouvir o tipo de coisas que você preferiria não ouvir. Essa é também a ruína de alguns dos personagens de “The Casual Vacancy”.

SPIEGEL: Nesse romance, um dos personagens mais gostáveis também morre no final. O quão difícil é matar os seus protagonistas?
Rowling: Graham Greene disse que todo escritor deve ter uma lasca de gelo em seu coração. Enquanto escrevia “The Casual Vacancy”, estava muitas vezes perturbada e infeliz, mas isso não muda o fato de que sabia exatamente o que tinha que acontecer aos personagens. E sabia também que isso teria que acontecer, mesmo que as cenas fossem difíceis de escrever.

SPIEGEL: Alguma vez você já apreciou matar um personagem?
Rowling: Não, nunca. Na verdade, não é bem assim. Houve uma exceção. A única personagem que gostei de matar foi Belatriz Lestrange no último volume de Harry Potter. Foi um prazer poder matá-la.

SPIEGEL: Seu romance está cheio de observações sobre a classe média. Ainda é possível fazê-las, dada sua condição de vida atual?
Rowling: Muitas partes de minha vida são completamente comuns, se é o que quer dizer. Poderiam até achar entediante, mas é isso que gosto. Eu amo cozinhar, e gosto de ficar em casa com meus dois filhos mais novos, que têm sete e nove anos. Ninguém me conhece pessoalmente como J.K. Rowling – na vida privada, uso o sobrenome do meu marido. Mas às vezes, me transformo. Visto um vestido glamouroso, vou à estreia de um filme ou apareço na cerimônia de abertura das Olimpíadas, então sou J.K. Rowling.

SPIEGEL: Soa um pouco confuso.
Rowling: Eu gosto dessa distinção. Ela me possibilita ter encontros mais descontraídos na vida privada. Quando as pessoas me conhecem, elas realmente não pensam sobre o fato de que também sou J.K. Rowling.

SPIEGEL: Qual é o lado bom de ser a autora mais famosa do mundo?
Rowling: Uma das melhores coisas é quando uma garota de 21 anos vem até mim, como aconteceu recentemente, e diz: Você foi minha infância. Posso abraçá-la?

SPIEGEL: E o lado ruim?
Rowling: O lado ruim, hmmm… Na verdade, não quero falar sobre o lado ruim, porque estou realmente agradecida pelo que aconteceu comigo. Mas se tivesse que dizer alguma coisa, seria o sentimento de ser inundada por minha fama repentina. Foi chocante. Se posso lidar com ela hoje, é porque tenho muito apoio.

SPIEGEL: Você ficou rica e famosa ao fazer um tipo de trabalho que significa muito para você. É uma rara exceção. Você entende isso como um luxo?
Rowling: Totalmente, e estou totalmente grata por isso, mas o importante é que ser rica nunca foi meu objetivo. Há alguns anos, recebi uma carta de uma organização – acho que foi dos Estados Unidos – que queria me nomear como empreendedora do ano. Respondi que infelizmente tinha que recusar, porque ganhei tanto dinheiro por pura sorte. Nunca foi minha intenção. Escrevi um livro que achava bom. Isso é tudo.

SPIEGEL: O sucesso te mudou?
Rowling: Sim, e qualquer um que diga que não estará mentindo. Primeiro, o sucesso tirou várias preocupações da minha vida, pois eu era mãe solteira na época, tinha um contrato temporário como professora e não sabia por mais quanto tempo conseguiria pagar o aluguel. Quando assinei o contrato americano para Harry Potter, ganhei muito dinheiro praticamente do dia para a noite. Causou uma tsunami de pedidos de dinheiro, como você pode imaginar. Fiquei completamente atônita. E de repente me senti responsável por isso em vários sentidos. Primeiro pensei: Você não pode estragar isso agora. Estava paranoica, pensando que faria algo estúpido e teria que voltar a morar no apartamento pequeno alugado com minha filhinha Jessica. Quis ter certeza de que tudo estava seguro. Estava praticamente colocando dinheiro embaixo do colchão. Senti o mesmo pânico quando era hora de distribuir o dinheiro. Comecei a dá-lo em todas as direções, o que, no fim, não ajuda ninguém. Do jeito que cresci, não estava preparada para uma situação como aquela.

SPIEGEL: Como você cresceu?
Rowling: Não venho de uma família muito rica. Frequentava uma escola pública, e tinha amigas cujas famílias viviam na linha da pobreza. Mais tarde, na Universidade de Exeter, fiquei na companhia de pessoas ricas pela primeira vez. Descobri seus preconceitos e fiquei triste ao saber que viam o mundo de um jeito estereotipado. Isso foi um bom tempo antes de me descobrir em situação semelhante.

SPIEGEL: Como se sente na companhia de pessoas ricas hoje?
Rowling: Devido ao curso incomum de minha vida, pude observar como o comportamento das pessoas muda quando elas ficam ricas. Lembro-me claramente de um encontro com um homem, que eu prefiro não descrever em detalhe. Ele disse para mim, muito objetivo: “Sorte que não tem ninguém da ralé aqui”. Parecia que ele achava que eu concordava com seus valores e tinha a mesma opinião. Não lhe ocorreu que, apenas 15 anos depois, eu seria uma dessas pessoas que ele considerava da ralé.

SPIEGEL: Você acha esse tipo de comportamento ofensivo?
Rowling: Acho alarmante as pessoas acreditarem que o sucesso – e em nossa sociedade, a riqueza é igual ao sucesso – faz com que você esqueça como a vida era antes. Como se você mudasse seus valores. É preocupante alguns acharem que minhas memórias pudessem ser simplesmente deletadas, como um programa de computador. Até hoje, eu não parto do princípio que posso pagar minhas contas, e que posso manter minha casa. Pode parecer improvável, mas até hoje não parto do princípio de nada.

SPIEGEL: Mas você tem sido uma das pessoas mais ricas da Grã-Bretanha por mais de uma década.
Rowling: Fiquei muito mais organizada. Criei uma fundação, e tenho administradores. Decidimos juntos como gastar o dinheiro, e nos certificamos que o dinheiro vá para as pessoas certas. Naturalmente, tudo isso muda uma pessoa. A pressão que aguentei nos últimos anos também me mudou, porque depois de assinar os contratos internacionais para Harry Potter, tive que cumprir as expectativas que todas as editoras tinham de mim.

SPIEGEL: Você ficou rígida no lançamento de seu romance. Até o dia da publicação internacional, apenas 30 pessoas tinham visto o manuscrito. Por que é tão importante manter o controle?
Rowling: No fim, houve várias propagandas enganosas na publicação de Harry Potter, e eventualmente saiu do controle e foi muito estressante para mim. Dessa vez queria que as coisas fossem um pouco mais normais e razoáveis.

SPIEGEL: Entretanto, você ainda está bem longe do normal. Normalmente os publicantes enviam cópias antecipadas semanas antes do lançamento.
Rowling: Falei sobre isso com Stephen King. Ele deve ser o único autor do mundo que esteve em uma situação parecida com a minha. Ele tentou fazer cópias antecipadas, mas pouco tempo depois estavam sendo vendidas na eBay. É o mundo em que nós vivemos, onde um manuscrito pode ser copiado várias vezes dentro de segundos. É um grande problema para autores e publicantes.

SPIEGEL: O quão importante é para você que “The Casual Vacancy” faça sucesso?
Rowling: Temos que definir o que entendemos por sucesso.

SPIEGEL: Boas resenhas, muitos leitores.
Rowling: Tenho certeza que nunca terei outro sucesso como Harry Potter pelo resto da vida, não importa quantos livros eu escreva nem se eles serão bons ou ruins. Lembro claramente de que pensava a mesma coisa quando a empolgação com o quarto volume de Harry Potter literalmente explodiu. Tal pensamento era perturbador naquela época, e ainda me sinto assim hoje. Com esse livro, honestamente – e vai ter gente que não vai acreditar em mim, mas não importa – a coisa mais importante para mim é que estou satisfeita. Não quero ser arrogante de modo algum. Cada escritor prefere boas resenhas a más, e todos querem ter muitos leitores. Mas se não acontecer, tudo bem. Talvez eu não dê uma festa, então; apenas irei para casa e continuarei escrevendo.

SPIEGEL: É uma estreia de gênero?
Rowling: Sim, de certo modo. É meu primeiro livro depois de Harry Potter, e desse modo, também é libertador.

SPIEGEL: Sra. Rowling, obrigada pela entrevista.