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Regras para serem quebradas

Na Líbia, o ditador Muammar Kadhafi continua impondo sua autoridade com violência sobre os rebeldes, que clamam por democracia. Embora não pareça desistir, pouco a pouco a força de seu regime cai, e o mundo começa a perceber que, às vezes, algumas regras precisam ser quebradas – principalmente aquelas que cerceiam os direitos inegáveis das pessoas.

E o que as (chatas, diriam alguns) guerras políticas do mundo real tem a ver com Harry Potter? Tudo, diria nossa colunista Mariana Nascimento. Em seu novo texto, ela relembra e analisa alguns trechos da série em que a transgressão de regras foi o ponto-chave para escapar de um autoritarismo excessivo e perigoso. Confira a íntegra aqui e mostre toda a sua rebeldia num comentário revolucionário.


Em tempos de revoltas no Egito e na Líbia, um assunto presente em “Harry Potter” merece nossa atenção: a relação com as regras ou com a autoridade.

Por se tratar de uma série cujos protagonistas são crianças (no começo) e adolescentes (do meio para o fim), a autoridade a que a maioria das pessoas dessa faixa etária está submetida se torna motivo de transgressão de Harry e companhia, o que resulta em perigo e aventura.

A primeira vez em que Harry quebra as regras é ao sobreviver à maldição Avada Kedavra, mas a primeira cena de transgressão que nos é apresentada é a de quando ele conta aos Dursley o sonho em que havia uma moto voadora. Esse episódio é bastante simbólico, pois mostra que Harry resiste ao que há de pior no autoritarismo: a tentativa de cercear a capacidade de imaginar e refletir das pessoas.

Já em Hogwarts, ainda em “A pedra filosofal”, encontramos dois tipos de autoridade: a que existe por ser respeitável, na figura de Dumbledore; e a que se impõe por meio da ameaça, representada por Filch. Como o bem deve sempre vencer o mal, o próprio Dumbledore ajuda Harry a desrespeitar as regras de Filch, ao presentear o garoto com a capa da invisibilidade. Com o tempo, Filch passa a parecer ridículo de tão ineficazes que são suas estratégias para manter a ordem.

O mesmo acontece com Umbridge e suas resoluções para lá de questionáveis. Quanto mais ela tenta limitar os direitos dos estudantes de Hogwarts, mais eles se esforçam para se libertar. O resultado é o que todo ditador deve temer – a organização da resistência (no caso, a Armada de Dumbledore).

Mas durante o período de tirania de Umbridge, acontece algo que chega a ser mais surpreendente. Quando Fred e Jorge abandonam a escola, eles recusam toda a autoridade do conhecimento acadêmico. Para os defensores fanáticos do politicamente correto, pode parecer absurdo que um livro lido por milhares de crianças conte isso. Porém, o que a atitude dos gêmeos e suas consequências mostram é que a escola não é a única opção para quem quer aprender e desenvolver suas habilidades.

A questão da quebra das regras foi a que mais me chamou atenção em uma das primeiras reportagens críticas (e com a opinião de especialistas em literatura) que li sobre a série, há muito tempo, antes da conclusão da história. Para mim, isso se tornou uma das provas de que “Harry Potter” não é uma obra boba. Sem dúvida, muitos outros exemplos relacionados a esse assunto podem ser encontrados nos sete livros. Porém, para que esta coluna não abuse da paciência do leitor internauta, cito apenas mais um caso de desrespeito às normas.

Trata-se dos capítulos em que o narrador transgride as próprias regras. Ao longo da série, é possível perceber que tudo é narrado do ponto de vista de Harry (embora em terceira pessoa). Contudo, no começo do sexto e do sétimo livros, são narradas cenas das quais Harry não participa. Assim, no plano da forma ocorre o mesmo que observamos no plano do conteúdo. Isso é feito em “Relíquias da Morte” também com a mudança de cenário, já que a norma é que maior parte da história se passe em Hogwarts, mas a aventura final acontece principalmente fora da escola.

Os personagens quebram as regras, o narrador quebra as expectativas (e Rowling quebra recordes!). Afinal, a rigidez, o autoritarismo, o conservadorismo e companhia costumam não ajudar em nada, uma vez que sua finalidade maior é nos impedir de pensar.

Mariana Nascimento é procurada pela polícia (trouxa e bruxa) por aliciar jovens rebeldes.