J. K. Rowling

J.K. Rowling escreve Manifesto das Mães Solteiras

Nossa querida Jo Rowling, escritora da série Harry Potter, apareceu hoje na edição matinal do periódico britânico The Times, no qual escreveu um artigo intitulado “Manifesto das Mães Solteiras”, onde critica o Partido Conservador Britânico.

“O Manifesto conservador de ontem deixa claro que os membros do Tory visam menos apoio governamental para os necessitados, e mais investimento ao “terceiro setor”: a caridade”

É bom ver a escritora de nossa série favorita mostrando seus talentos em outras publicações. A tradução completa do artigo será postada em breve, fiquem ligados!

Atualizado: A tradução do manifesto na íntegra se encontra na extensão!

JK ROWLING
Manifesto das Mães Solteiras

Times Online ~ JK Rowling
14 de abril de 2010
Tradução: Daniel Mählmann

“Eu nunca votei no Tory¹ antes, mas…”. Aqueles pôsteres cheios de paródias, com seus indivíduos fotogênicos e legendas antigas, lembram-me irresistivelmente os brilhantes cartões de boas festas. Na verdade, quanto mais eu penso sobre isso, mais as eleições em geral têm em comum com os aniversários de meia-idade. Ambos implicam em uma série de agitação indesejada; ambos oferecem oportunidades ímpares para congratulação e despeito, e você já viu tantos se passarem que grande parte da emoção se esgotou.

No entanto, eles se tornam mais significativos, mais importantes. Por trás de todo o estilo bombástico e dos balões, há a consciente melancolia de que mais tempo passou, o balanço das ambições alcançadas e das oportunidades perdidas.

Então aqui estamos novamente, fazendo um balanço de onde estamos e de onde gostaríamos de estar, tanto como indivíduos tanto como país. Pessoalmente, eu continuo tendo flashbacks de 1997, e não apenas por causa do resultado mais memorável das eleições dos últimos tempos. Em janeiro daquele ano, eu era uma mãe solteira com uma filha de quatro anos, dando aulas em meio período, mas vivendo principalmente de benefícios do governo em um flat alugado. Onze meses depois, eu era uma autora publicada que havia assinado um lucrativo negócio de publicação nos EUA, e comprei o meu primeiríssimo imóvel: uma casa de três quartos com um jardim.

Eu tinha me tornado uma mãe solteira quando o meu primeiro casamento acabou em 1993. Em um golpe devastador, eu me tornei uma figura odiada para alguns segmentos da imprensa, e um bicho-papão para o Governo Tory. Peter Lilley, o então Secretátio de Estado do DSS (Departamento de Segurança Social), tinha recentemente animado uma conferência do Partido Conservador com uma paródia de um número de Gilbert e Sullivan, no qual ele denunciou “moças que engravidam somente para pular para a lista de habitação”. O Secretário de Estado do País de Gales, John Redwood, criticou severamente as famílias com apenas um dos pais de St Mellons, Cardiff, como “um dos maiores problemas sociais dos nossos dias”. (John Redwood, desde então, divorciou-se da mãe de seus filhos.) Mulheres como eu era (e um fato curioso é que quando o único parente é o pai, eles geralmente são retratados como heróis, enquanto que as mulheres abandonadas com o bebê são caluniadas), de acordo com o mito popular, são a principal causa da discriminação social, e devido a tudo o que podemos conseguir: dinheiro grátis, hospedagem financiada pelo Estado, uma vida fácil.

Uma vida fácil. Entre 1993 e 1997 eu fiz o trabalho de ambos os pais em tempo condicional e, em seguida, trabalhei como professora em uma escola secundária, escrevi um livro e meio e fiz o planejamento para outros cinco. Por um tempo, eu estava clinicamente deprimida. Ser informada, repetidas vezes, que eu era irresponsável, preguiçosa – até mesmo imoral – não ajudou.

A nova vitória esmagadora do Labour marcou uma cessação das hostilidades do governo para com as famílias como a minha. A mudança no tom de voz foi muito bem-vinda, mas a substância é, claro, mais importante do que o estilo. O Labour tinha ótimas ambições para a erradicação da pobreza infantil e, embora tenha tido sucesso inicialmente em inverter a tendência decrescente que persistia ininterruptamente desde o governo Tory, não atingiu os seus próprios objetivos. Resta muito a ser feito.

Isso não quer dizer que não houve inovações reais para ajudar as famílias monoparentais. Em primeiro lugar, os créditos tributários de assistência infantil foram introduzidos por Gordon Brown quando era Chanceler, o que foi uma forma significativa de lidar com o fato de que o maior obstáculo para as famílias monoparentais em retornar ao trabalho não era inato à preguiça, mas à quase impossibilidade de proporcionar uma assistência infantil adequada.

Depois vieram os centros Sure Start, dos quais há agora mais de 3.000 em todo o Reino Unido: centros de serviços onde as famílias com filhos menores de 5 anos podem receber serviços integrados e informação. A menos que você já tenha se beneficiado com ações diferentes envolvidas em habitação, educação e assistência infantil, você não pode apreciar a grande inovação que são esses centros. Eles possuem vínculos com o Jobcentres, oferecendo ajuda para garantir emprego, e dão conselhos sobre a paternidade, cuidados com a criança, educação, serviços especializados e até mesmo de saúde. Um memorando da National Audit Office publicado em janeiro passado constatou que a eficácia geral de 98% da assistência infantil oferecida foi considerada “boa ou excelente”.

Então aqui estamos nós, em 2010, com o que promete ser outra eleição memorável em um futuro próximo. A caridade Gingerbread³ (hoje ligada ao Conselho Nacional para Famílias Monoparentais), desejosa de evitar a lama crescente do início dos anos noventa, recentemente encorajou Messrs Brown, Cameron e Clegg a se inscreverem em uma campanha chamada “Let’s Lose the Labels” (Vamos Perder os Rótulos), que visa combater os estereótipos negativos das famílias monoparentais. Aqui estão apenas alguns dos fatos que às vezes se perdem pelo caminho para uma história fácil, ou um discurso político eloquente: apenas 13% dos parentes solteiros têm menos de 25 anos, a idade média é de 36 anos. 52% vivem abaixo da linha de pobreza e 26% vivem em habitações “não decentes”. Famílias monoparentais são mais propensas a ter alguém com incapacidade do que famílias compostas por casais, o que dá uma ideia das tensões que uma ruptura familiar causa. Apesar de todos os obstáculos, 56,3% das famílias monoparentais têm emprego remunerado.

Como há 1.9 milhões de votos monoparentais para ganhar, não deveria surpreender a ninguém que os três líderes dos principais partidos políticos tenham concordado em se inscrever para a campanha do Gingerbread. Para David Cameron, no entanto, isso certamente envolve um difícil ato de aceitação.

O manifesto conservador de ontem deixa claro que os membros do Tory visam menos apoio governamental para os necessitados, e mais investimento ao “terceiro setor”: a caridade. Além disso, reitera a política emblemática tão orgulhosamente defendida por David Cameron na semana passada, de que “pregam o casamento”. Para este fim, eles prometem reduzir meio bilhão de libras de impostos para casais de baixa renda, totalizado em 150 libras por ano.

Eu aceito que meus amigos e eu podemos ser atípicos. Talvez você conheça pessoas que iriam se unir legalmente e viver com outro ser humano para ganhar um extra de £150 por ano? Talvez você estivesse vivendo um casamento sem amor ou abusivo, mas se submeteria a uma mudança de sentimentos ao ouvir sobre uma possível redução de impostos de £150? Tudo é possível; mas de alguma forma, eu duvido. Até mesmo o Sr. Cameron parece admitir que ele está oferecendo nada mais do que um gesto simbólico, quando nos diz “não é o dinheiro, é a mensagem”.

Ninguém que já tenha experimentado a realidade da pobreza poderia dizer que “não é o dinheiro, é a mensagem”. Quando o seu flat foi arrombado e você não pode pagar um chaveiro, é o dinheiro. Quando faltam a você 2 centavos para comprar uma lata de feijões, e o seu filho está com fome, é o dinheiro. Quando você se pega contemplando furtos em lojas para conseguir fraldas, é o dinheiro. Se o único conselho prático do Sr. Cameron às mulheres vivendo na pobreza, as únicas que cuidam de seus filhos, é “se case e nós vamos te dar £150”, ele se revela completamente ignorante da verdadeira situação delas.

Quantos possíveis maridos eu já conheci, quando era mãe solteira de um bebê, incapaz de trabalhar, presa dentro do meu apartamento, noite após noite, quase sem dinheiro suficiente para as necessidades da vida? Eu deveria ter pedido em casamento o jovem que irrompeu pela janela da minha cozinha às 3 da madrugada? Meio bilhão de libras para enviar uma mensagem – não seria mais rentável, mais pessoal, enviar flores a todas as pessoas casadas de baixa renda?

Sugestões de que o Sr. Cameron parece alheio à forma como as pessoas pobres realmente vivem, pensam e se comportam provocam acusações de luta de classes. Deixem-me declarar portanto, para constar, que eu não acho que é mais culpa dele ter passado sua adolescência na gravata branca e agarrado à cauda de Eton do que minha por ter passado quase o mesmo período nas vestimentas medonhas marrom e amarelo da escola integral Wyedean. Eu simplesmente quero saber que os aspirantes a primeiro ministro têm se dado ao trabalho de se informar sobre as vidas de todos os tipos de britânicos, não apenas dos tipos que enviam mensagens com as notas bancárias.

Mas espere, dirão alguns. Uma vez que você deixou de ser mãe solteira há muito tempo para casar e ter um núcleo familiar; uma vez que agora você está tão longe de uma vida dependente de benefícios que o Private Eye habitualmente se refere a você como Rowlinginnit, por que você se importa? Certamente, hoje em dia, você é uma natural eleitora do Tory?

Não, receio que não. A campanha eleitoral de 2010, mais do que qualquer outra, sublinhou o abismo persistente entre os valores do Tory e os meus próprios. Não é apenas porque a marginalização renovada dos solteiros, dos divorciados e viúvos traz de volta lembranças muito ruins. Houve também a revelação, após dez anos de hesitações sobre o assunto, de que Lord Ashcroft, o presidente dos deputados dos conservadores, não tem domicílio para propósitos fiscais.

Agora, eu nunca, nunca, esperaria me encontrar em uma posição onde poderia entender, por experiência própria, as escolhas e tentações abertas a um homem tão rico quanto o Lord Ashcroft. O fato é que na primeira vez que encontrei meu contador recentemente aposentado, ele me colocou à queima-roupa: eu queria organizar o meu dinheiro ao redor da minha vida, ou a minha vida em torno do dinheiro? Nesse último caso, era hora de me mudar para a Irlanda, Mônaco ou possivelmente Belize.

Optei por continuar a ser uma moradora contribuinte por duas razões. A principal delas era que eu queria que meus filhos crescessem onde eu cresci, para ter raízes adequadas em uma cultura tão antiga e magnífica como a Grã-Bretanha; serem cidadãos, com tudo o que isso implica, de um país verdadeiro, não livre de flutuações de exilados, vivendo no limbo de algum paraíso fiscal e associados apenas com os filhos de exilados de impostos gananciosos similares.

A segunda razão, entretanto, foi que eu estou em dívida para com o estado-providência da Bretanha; aquele que o Sr. Cameron gostaria de substituir com esmolas de caridade. Quando a minha vida atingiu o fundo do poço, a rede de segurança, embora tênue quando havia se formado sob o governo de John Major, estava lá para amortecer a queda. Não posso deixar de sentir, portanto, que teria sido desprezível fugir para as Índias Ocidentais ao primeiro cheiro de um cheque majestoso de sete dígitos. Essa, se você gosta, é a minha noção de patriotismo. Com base nas evidências disponíveis, eu suspeito que a ideia do Lord Ashcroft é a de uma caneca.

A pobreza infantil continua sendo um problema vergonhoso nesse país, mas nunca será resolvido jogando milhões de libras de redução de impostos a casais que não têm filhos. David Cameron nos diz que os conservadores mudaram, que eles já não são o “partido desagradável”, que ele quer que o Reino Unido seja “uma das nações mais favoráveis à família na Europa”, mas eu, por exemplo, não estou comprando essa ideia. Ele foi reembalado em uma política que tornou vidas desesperadas piores no passado, quando seu partido estava no poder, e está tentando vendê-lo como algo novo. Eu nunca votei no Tory antes… e eles continuam me lembrando o porquê.

Notas do Tradutor

¹ Tory é uma referência ao Partido Conservador Britânico.
² Labour é o Partido Trabalhista do Reino Unido.
³ Gingerbread é uma instituição de caridade britânica da qual JK Rowling é presidente.