Artigos

Trocando varinhas por pistolas

Trocando varinhas por pistolasTrocando varinhas por pistolas
Ele empunha uma poderosa arma. Ele se mantém muito próximo de uma mulher inteligente. Ele não é Harry Potter com sua Hermione.
Bruna Moreno nos oferece uma janela privilegiada para a série Artemis Fowl, o malfeitor ladrãozinho-armado que seqüestra uma fada perspicaz para receber um gordo resgate e resgatar a honra de sua família de bandidões espetalhões. A resenha, que não contém spoilers da série, você lê na extensão.


por Bruna Moreno

Acho que não existe menina no mundo, seja no trouxa ou no bruxo, que não tenha deixado escapar pelo menos um suspirinho por Harry Potter. Talvez seu físico não seja o ápice da atração (será que a senhorita Chang teria preferido nosso bruxinho se ainda pudesse ficar com o charmoso Cedric Diggory? Tenho lá minhas dúvidas), mas, (ah!) quanta coragem e generosidade, não? Sempre um menino bondoso e de bom coração, nada de muitos rancores, apesar dos maus tratos que sofreu dos tios e da perseguição de alguns (ou apenas um?) professores na escola. Claro que ele já teve seus momentos de raiva, como todo ser humano; mas, em suma, Harry Potter sempre se mostrou uma pessoa nobre, valente, leal e honrosa, genuíno grifinório, “um homem melhor” que o maior bruxo de todos os tempos (Dumbledore, é claro), verdadeiramente digno de ser o possuidor das Relíquias da Morte.

Bonzinho demais, às vezes.

Enquanto na Escócia a tia Jo resolveu delinear traços mais altruístas em seu protagonista, lá perto, na Irlanda, o escritor Eoin Colfer preferiu se aventurar a escrever algo bem pelo contrário: criou um personagem ambicioso e egoísta, egocêntrico, inescrupuloso, metido a culto, a inteligente, a superior e, ainda por cima, um ladrão. Você pode achar que esta é uma cópia de algum Tom Marvolo Riddle — mas, não, de maneira alguma, porque esse personagem é, acima de tudo isso que me atrevo a chamar agora de “qualidades”, um jovenzinho de 12 anos muito do charmoso.

FOWL SEGUNDO, PRÍNCIPE HERDEIRO
Seu nome é Artemis Fowl II (pois sim, existe o Senior!), e toda sua presunção vem pelo fato de ser o “príncipe-herdeiro” da grande família Fowl — mundialmente conhecida por seu histórico de crimes, que incluem desde roubos de quadros até desvios de dinheiro; contravenções que, se nunca foram motivo suficiente para prender qualquer Fowl, ao menos foram capazes de garantir prestígio e uma suave quantia de bilhões de dólares. O pequeno Artemis leva uma vida confortável: quando não está forçosamente na Escola St. Bartleby’s para Jovens Cavalheiros, aconchega-se em seu aposento particular na mansão e se diverte escrevendo artigos acadêmicos para revistas de psiquiatria (pois, claro, conseguira se formar em um curso de graduação à distância sob a alcunha de doutor F. Roy Dean Schlippe).

Isto, porém, somente dura até seus dez anos de idade. O alicerce da família Fowl de repente despenca quando Artemis I se envolve em um perigoso negócio com a máfia russa, e misteriosamente desaparece, levando consigo mais da metade da fortuna herdada e, aparentemente, a sanidade da matriarca Angeline Fowl. O filho Artemis se vê então sozinho e com uma responsabilidade nas costas: segurar as lágrimas diante da suposta morte do pai e recuperar seu status de bilionário — do melhor modo irlandês (e criminoso), lógico.

Decidiu roubar o ouro das fadas.

Sim! Fadas, gnomos, duendes, leprechaums: as criaturas verdes e baixinhas das famosas lendas do pote de ouro no final do arco-íris. Bastaram dois anos de pesquisa de campo para que Artemis comprovasse a real existência do Povo das Fadas e de toda sua riqueza. Quando completou doze anos de idade, o menino prodígio do crime arquitetou um plano digno de um Fowl e seqüestrou uma fadinha. Seu objetivo? Um gordo pagamento de resgate.

Assim como em “Harry Potter” a sociedade bruxa regulamenta e desregulamenta suas leis para se manter anônima aos trouxas, o Povo das Fadas — composto não somente por elas, mas por outros famosos seres fantásticos, como elfos, centauros, diabretes, goblins e anões — também se contorce para manter sua sobrevivência subterrânea desconhecida. O motivo é o mesmo, claro: a magia, que em uma história assusta os “normais” do tipo Dursley, e que na outra corrompe os denominados “Homens da Lama”. Porém, se os bruxos têm de ir à escola para aprender um mínimo da infinita quantidade de feitiços e afins, as fadas conseguem contar nos dedos tudo de fantástico que podem fazer. Para elas, não houve outra opção a não ser o desenvolvimento tecnológico: aparatos movidos à energia nuclear, computadores avançados, biobombas de extermínio automático, campos de parada temporal, microcâmeras de íris, uniformes de inteligência artificial, propulsores de magma e mais algumas espécies de armas letal e avançadamente científicas mostram apenas uma pequena parte de toda a tecnologia dos Elementos de Baixo.

UMA HERMIONE-TONKS MUNIDA DE PISTOLA
A infeliz sorteada a ser feita refém foi a capitã Holly Short, a primeira fada entre o mundo machista dos elfos a fazer parte da vasta polícia do subterrâneo, a LEPrecon (Liga de Elite de Polícia — de onde vem o óbvio nome de sua profissão, leprechaum). A pequena Holly é um notável misto de Hermione Granger com Nymphadora Tonks: inteligente e atrapalhada, leal e audaz, teimosa e sem limites. A única diferença é que, ao invés de empunhar uma varinha, enlaça entre os dedos uma pistola semi-automática.

A partir deste momento, situações inusitadas (baleeiros que explodem e trolls destruidores?) se desenrolam e personagens inusitados (anões-répteis que engolem terra e soltam pelo – bem, não vou dizer) aparecem, tecendo um enredo que, se para você, fã pottermaníaco, não chega aos pés de seu Deus Harry, consegue muito bem competir num páreo duro.

As primeiras páginas que abrigaram essa história singular foram “Artemis Fowl – O Menino Prodígio do Crime”, pontapé inicial para uma série que, inicialmente, não passaria de uma trilogia. Colfer realmente estava disposto a acabar com sua criação no terceiro volume, “Artemis Fowl – O Código Eterno”, quando submeteu meu querido protagonista a um evento imemorável (o qual não posso mencionar por óbvios spoilers, e porque gostaria, é claro, de atiçar a curiosidade do meu leitor); porém os fãs, como bem somos, tiveram mais forças, e trouxeram o malfeitor de volta à ativa. Hoje, a série conta com cinco volumes publicados no Brasil, e um sexto que há pouco foi lançado na Europa.

No passado, durante meus longos anos de espera por cada nova bênção da tia Jo, costumava afogar minhas mágoas de mortes injustas (nós sabemos quão injustas elas foram, snif) com as idéias malucas do pequeno Arty. Não havia nada que me fizesse rir mais do que as piadinhas de humor sarcástico (um bom-humor Weasley) do centauro Potrus, ou do que os comentários de rabugice (um mau-humor Snape) do capitão Raiz, tudo escrito na elegante fluidez européia, a mesma que incita a pedir mais pelo jovem Harry. E os dois, Artemis e Harry, têm em suas gritantes diferenças o mais igual: o gosto pela magia, a incessante aventura, as referências lendárias, a mistura do maravilhoso da fantasia com a chatice do mundo real.

“Artemis Fowl”, qualquer um de seus livros, é uma ótima pedida de leitura ficcional. E o melhor dela, acima de tudo, é o fato de não ter fim certo: poderemos sempre reviver aquele (gostoso e nostálgico!) friozinho na barriga de expectativa pelo próximo volume.

Trocando varinhas por pistolas
Bruna Moreno não precisa de pistola ou varinha para fazer um pouco de magia.