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Chaucer e as Relíquias da Morte

Nosso colunista, Luis Nakajo, continua nossa área de Ensaios com uma interessante análise sobre as Relíquias da Morte e o conto dos Três Irmãos original, que inspirou nossa querida J.K.Rowling a adaptar a história para o sétimo livro de Harry Potter.

Se você ainda não leu Harry Potter and the Deathly Hallows e não quer saber de spoilers, não aconselhamos a leitura da coluna.

Você pode conferir a coluna completa aqui.

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CHAUCER E AS RELÍQUIAS DA MORTE
No Sermão do Perdoador, a origem do Conto dos Três Irmãos

Por Luis Nakajo

Chaucer e as Relíquias da Morte
ORIGEM: Schiler Institute

A grande cartada de J K Rowling em Deathly Hallows é o conto dos Três Irmãos, que detinham o que Xenophilius Lovegood e outros lunáticos denominam Relíquias da Morte –objetos que, reunidos por determinado homem, permitiriam a ele vencer a Morte e sua astúcia.

Barganhas para fugir da Morte –e tentativas de escapar de seus bracinhos – não são novidade na literatura. Desde o Fausto de Goethe até as Horcruxes de Voldemort, há uma bela estrada de bem (ou mal) boladas estratégias para se esquivar da morte e ganhar o que, ridiculamente, se podem chamar de “poderes” sobre-humanos.

Nossa história, porém, começa no século 14.

No chat que a Bloomsbury promoveu em 30 de julho, Rowling disse que uma das principais influências para este conto dos Três Irmãos é a de um certo autor que muitos não conhecem: Geoffrey Chaucer, autor do revolucionário “Contos da Cantuária” (The Canterbury Tales).

LAGO PROFUNDO
Chaucer, de acordo com o professor Harold Bloom, é o lago sobre o qual William Shakespeare navegou. De onde bebeu muito e com muita inventividade, levando as conquistas narrativas de Chaucer a uma intensidade humana ainda maior.

Com Chaucer (1343-1400), inicia-se a tradição inglesa do humor, das personagens cada vez mais complexas e fluídas. Nada de julgamentos moralistas sobre seus atos, ao contrário do que ocorre, por exemplo, na obra do influente florentino Dante (cuja “Divina Comédia” é uma enorme classificação dos pecados humanos e os castigos que os aguardariam no inferno).

Chaucer e Shakespeare inauguram o que o Professor Bloom chama de Cânone Ocidental, o conjunto de escritores que é base de toda e qualquer obra literária que se preze. Impossível escapar à influência do cânone. E, acima de tudo, é impossível escapar à influência de Shakespeare –e, automaticamente- de Chaucer, seu “pai intelectual”. Os gênios inovam com o arroz-e-feijão nosso de cada dia e assim superam a “angústia da influência”. O lance de inventividade do escritor excelente está em abraçar esta herança literária e criar tudo de novo, com pequenas melhoras, adaptações, marcas da individualidade artística. É uma liberdade de criação com os elementos já utilizados pelas gerações anteriores.

A PEREGRINAÇÃO
Ao nosso arroz com feijão:
Os Contos da Cantuária são na verdade a história de uma peregrinação. Trinta pessoas se encontram numa hospedaria na beira da estrada e, juntos, rumam para a Cantuária, onde pretendem redimir seus pecados no santuário de São Thomas Becket. A caminho, para matar o tempo, é proposto um jogo: uma disputa de histórias. Quem contar o melhor conto, ganharia um jantar pago por todos os outros 29 companheiros.

O resultado é soberbo: eles jogam papo fora, contam causos -e revelam muito do imaginário da época. O diferencial de Chaucer está na ironia das personagens, que raramente deixam subentendidos e malícia de lado. Parecem rir dos preconceitos e são duma sinceridade deliciosa.

Chaucer não chegou a completar os Contos da Cantuária, porém. Morreu antes. Mas deixou dois relatos importantíssimos: o da Esposa de Bath –mulher que teve cinco maridos e anseia por um sexto, robusta em sua sexualidade -e o Perdoador– vendedor de indulgências e relíquias cuja posse, supostamente, eliminaria todos os pecados do consumidor e seria meio que ingresso para o Paraíso.

E esse último conto, em particular, tem muitas ligações com os Três Irmãos de Beedle, o Bardo. Rowling não escapou à influência de Chaucer –e recriou história, adicionando suas pitadinhas para dar no que deu: sucesso.

RELÍQUIAS DA CORRUPÇÃO
O Perdoador é figura-chave da sociedade que Chaucer esboça nos Contos da Cantuária. Ele não passa de um comerciante de indulgências, perdões concedidos pelo papa numa bula e vendidos aos interessados na vida eterna. O Perdoador anda com uma cadernetinha em que marca os nomes dos clientes, que também ganham o direito de beijar as relíquias que ele traz consigo –pedaços de osso, roupa, terra ou objetos pessoais outrora pertencentes a santos.

Na Idade Média toda, as relíquias de santos exerceram verdadeiro frenesi. Eram, afinal de contas, extensões do santo morto e seu poder miraculoso. Em vez de realizar milagres apenas na cidade onde nasceu, viveu e foi enterrado, o santo estendia sua abrangência e operava milagres através destas suas filiais: seus restos mortais e objetos tocados. Todos podiam ter sua cota de milagres caso adquirissem, a preços estratosféricos, um pouquinho do santo.

Pois o Perdoador vende (e aluga para beijinhos) exatamente esse tipo de mercadoria: em garrafas, em caixas de metal ou em bolsinhas de couro (é só escolher e pagar!). Com o objetivo de vender essas relíquias, o Perdoador de Chaucer tagarela pacas, faz sermão do tipo “beijem as relíquias que elas te garantirão um bom lugar no Céu” e desembesta num discurso cínico, mas engraçadíssimo.

Esses sermões, o Perdoador faz como todo bom sacerdote em frente a humanos meio obtusos: contando histórias, ou o que estudiosos como Jacques Le Goff chamam de exempla. Não deixa de ser algo como o que Jesus de Nazaré fazia com suas bem colocadas parábolas. Assim como a audiência de Jesus, a dos sacerdotes medievais era de gente que conhecia pouco além dos arredores das vilas ou propriedades rurais em que viviam. Histórias eram interessantes e já vinham com interpretação religiosíssima. Catequese coletiva.

Mas não uma catequese monótona. O Perdoador de Chaucer prega contra a gulodice, a bebedeira, os “vícios mundanos” e blasfêmias (todos temas que dariam um sermão bem morto), através da história de três baderneiros que juram “matar a Morte”. E aqui começa o sermão-conto do Perdoador.

A PESTE
Existiam, diz ele, três baderneiros que, antes mesmo de batido o sino matinal da igreja, estavam sentados a se embebedar. Passa, de repente, em frente aos três colegas, um cortejo fúnebre. Era o de um conhecido deles. O caixão carregava mais uma vítima de Morte, o terrível bandido que assolava as terras próximas.

O Morte de Chaucer é a peste, que algumas estatísticas indicam ter matado um terço dos europeus no século 14. Esse surto de peste tinha origem na bactéria Yersinia pestis, trazida do Oriente via ratos em navios ou até mesmo marujos contaminados. Como a alimentação dos camponeses e do homem em geral era péssima, uma vez doentes, poucos tinham imunidade suficiente para escapar da morte.

A INSOLÊNCIA
Alarmados com a morte de um homem tão jovem e embalados pelo vinho, os três arruaceiros selam um pacto-juramento: o de que matarão Morte, juntos, “como se fossem irmãos”. Saem à procura de Morte, pras bandas onde os rumores dizem ele estar. Cruzam, no meio de uma pinguela, com um velhinho envolto em trapos. São insolentes com o velho, enxotando-lhe para que cheguem logo ao local onde está Morte e assim logo o enfrentem.

Lembrou de alguém no meio de uma ponte, barrando o caminho de três arrogantes? Os Três Irmãos de Beedle, o Bardo, são no mesmo molde, conjuram uma ponte para evitar a corrente do rio bravio que certamente os mataria. São arrogantes. Querem vencer a Morte, uma morte metafórica (afogamento) que acaba se corporificando no meio da ponte na forma da Morte envolta em uma capa preta.

A Morte de Beedle é espertinha. Gosta da vingança servida fria. Sofre uma afronta dessas e não se deixa abalar. Dá três presentes para os irmãos: um varinha invencível, uma pedra de ressurreição e, a contragosto, sua capa de invisibilidade, que ela segurava. As duas primeiras são presentes de grego, como veremos com detalhes.

AS BOTIJAS DE VINHO
O velhinho, conta o Perdoador, também é afrontado com a rudeza e presunção dos baderneiros. Ele os censura pela falta de respeito com os mais velhos e retruca que não morreu ainda porque Morte ainda não quis –do contrário, ele iria de bom grado com Morte para onde quer que fosse.

Os irmãos, ao perceberem que o velho conhece Morte, o forçam, no meio da ponte, a contar onde está o salafrário assassino. O velhinho aponta para uma árvore, em meio a um bosquezinho. Os três correm ao local indicado. Sob a árvore, os três jovens baderneiros encontram uma fortuna em moedas de ouro. Deste ponto em diante, declara o Perdoador, não é mais em Morte que os três pensam –é nos florins que eles têm que transportar a um lugar seguro (para depois desfrutar deles na riqueza! Na alegria!).

Mas a ganância leva a melhor sobre os três. O mais velho dos desordeiros é o primeiro a se recuperar da euforia de descobrir ouro. Como ainda é dia e andar com ouro nas mãos não seria prudente, ele sugere que um deles vá até a cidade comprar mantimentos, enquanto os outros dois ficam e tomam conta do tesouro. À noite, eles transportariam todas as moedas, os três juntos. No joguinho dos palitos, o mais jovem é escolhido para ir à cidade.

Mal sai o jovem, os outros dois baderneiros começam a armar uma tramóia: assim que o jovenzinho voltar da cidade, eles o matariam, um o esfaqueando pelas costas e outro o esfaqueando pela frente, numa emboscada que começaria com uma “briga de mentirinha”. A grande ironia é que o jovenzinho também não é bobo. Tem muita vontade de ter o ouro só para si. Vai à cidade, compra três garrafas de vinho e um forte veneno para ratos. Adiciona o veneno em duas das garrafas de vinho e toca a voltar para junto dos baderneiros sob a árvore do tesouro.

O que se segue é o premeditado: os dois guardadores do tesouro matam o jovem e se dão os parabéns. Exaltados com a vitória, pegam uma das garrafas de vinho e começam a beber, na que prometia ser uma noite de felicidade e muito vinho. Mal passam dos primeiros tragos, porém, vêm a dor e as contorções causadas pelo veneno. Morrem, diz o Perdoador com visível satisfação, depois de muito, mas muito sofrimento.

BEBEDEIRA DE MORTE
A história do Perdoador e a dos Três Irmãos têm mais paralelos do que os visíveis. O irmão mais velho da história de Beedle, por exemplo, é o que sai à procura de um desafeto, o chama pro duelo, o mata e ainda se gaba de ter uma varinha imbatível, conquistada da Morte. Diz isso na frente de um monte de gente. Depois de uns e outros copos de vinho, o parvo cai na cama duma estalagem, inutilizado. Borracho, como dizem os espanhóis.

Na calada da noite, um invejoso se esgueira até o quarto, corta-lhe o pescoço e leva a varinha imbatível consigo. Pois o Perdoador prega exatamente contra a bebedeira, a causa dessa morte tola. Na explicação de sua história, fala explicitamente que “a bebida é o sepulcro do juízo”. É só beber um pouco e não existem mais segredos. É só beber e o homem sai a desafiar tudo e todos –inclusive a morte- ou sai a se gabar da varinha preciosa que tem para depois baixar a guarda, se embebedar.

O exemplo que ele dá é o de Átila, o chefe dos hunos: “Átila, o conquistador/ morreu dormindo (…)/ numa vergonha bêbada, sangrando seu nariz/ um general deveria viver sóbrio, algo me diz”. [[“Attila the conqueror/ died in his sleep (…)/ in drunken shame and bleeding at the nose/ a general should live sober, I suppose”]]

Enquanto a Morte de Beedle leva o primeiro irmão consigo, a Morte do Perdoador leva dois numa garrafada só. O vinho envenenado, além de símbolo da malícia do homem, é também uma metáfora bem construída: bebida alcoólica é veneno! O tipo de coisa que se prega não só nas igrejas, mas também em muitos outros recintos.

LOUCURA MORTÍFERA
O segundo irmão a ser vencido pela Morte de Beedle é o portador da pedra da ressurreição. Ele traz de volta à vida a sua amada, morta na tenra idade. Mas a guria, para desespero do homem, não se sente bem neste mundo –e permanece inalcançável, como que “por trás dum véu”. Ele acaba louco (ele a tem tão próxima, mas mesmo assim tão longe…). No final, se mata.

O Perdoador, por sua vez, cita um pensador romano, Sêneca, para desaconselhar a bebida mais uma vez. Disse Sêneca que não havia diferença alguma entre um louco doido-varrido e um manso homem depois de uns tragos. A loucura é igualada à embriaguez.

Assim, poderíamos dizer que os dois sedentos baderneiros, mortos por envenenamento de vinho, morrem da mesma causa que os dois irmãos de Beedle citados até aqui: embriaguez. Um morreu embriagado de orgulho (e vinho); o outro de desespero (e loucura). Vinho e loucura… duas realidades tão próximas…

PONTO MORTO
Chegamos agora a um ponto morto, onde a história criada por Rowling não pode ser relacionada diretamente ao enredo do sermão do Perdoador. O terceiro irmão de Beedle, o da capa de invisibilidade, não é morto numa emboscada, nem com vinho envenenado. Ele pura e simplesmente escolhe a morte, depois de um tempo protegido sob a capa que Morte lhe deu. Diz Beedle que “braço a braço, os dois, Morte e humano, como iguais, partiram desta vida”.

Nenhum dos três arruaceiros do sermão do Perdoador deixa a vida em igualdade com a morte –porque nenhum deles escolheu morrer, na velhice. Muito pelo contrário: juraram “matar a Morte”, o que não cumpriram, desviados pelo ouro. No fim das contas, a Morte lhes ceifou do mesmo jeito que os outros homens. Se tivessem o senso do terceiro irmão, os três baderneiros não estariam num sermão do Perdoador, que deseja casos de vício para impor medo em seus ouvintes e vender suas indulgências.

O primeiro irmão de Beedle morreu embriagado e assassinado. O segundo, enlouquecido, suicidou-se. Por desafiar a Morte com sua ponte, no começo, o terceiro irmão é tão arrogante quanto os outros dois. Mas se redime ao reconhecer, humilde, em sua velhice, que sem a Morte não há como terminar a vida com dignidade. Que sem Morte, não há como viver.

PARA LER MAIS
A edição que li dos “Canterbury Tales” é a da Penguin Classics. Essa edição é “traduzida” para o inglês moderno por Nevill Coghill. O texto original, achei complicado demais. Ele não nos liberta para apreciar a história e o jeito das personagens.

O último romance de José Saramago, “As Intermitências da Morte”, é a exploração mais acabada desta minha última colocação: sem a morte, não há como viver. Quando a Morte entra em greve, pelo menos, percebemos que ela tem lá o seu valor.

Quem se interessou pelo Cânone, o grupo de escritores inevitáveis, há o belíssimo “O Cânone Ocidental”, do professor Harold Bloom. Nele, 25 escritores são analisados com a inteligência e a clareza de um especialista em literatura.

Luis Nakajo é estudante “de tudo e de nada”, um humanóide.