J. K. Rowling ︎◆ Livros ︎◆ O Enigma do Príncipe

Como num passe de mágica

A matéria a seguir saiu na revista Veja e você pode ler aqui.

O que torna a obra de Rowling singular é que, ao contrário do que se esperaria numa série, ela se fortalece a cada episódio – além, é claro, de ser dirigida às crianças, cada vez mais resistentes à sedução da palavra impressa.

A série Harry Potter chega ao sexto volume sem perder nada de seu fôlego
Isabela Boscov

Em apenas 24 horas, quase 9 milhões de volumes voaram das prateleiras, e algo como 40 milhões de dólares aterializaram-se na conta bancária de uma inglesa ruiva de 39 anos. Essas cenas, registradas entre a meia-noite do sábado 16 e o dia seguinte, são prova de que certos tipos de magia de fato funcionam – especialmente os que vêm assinados por J.K. Rowling. O lançamento na semana passada de Harry Potter and the Half-Blood Prince (“Harry Potter e o Príncipe Mestiço”), sexta e penúltima parte da saga imaginada por Rowling, bateu todos os recordes do mercado editorial – recordes, aliás, pertencentes à própria escritora, que a cada livro da série crava novas marcas. Mesmo no Brasil, onde a edição traduzida deverá chegar às lojas até dezembro, o sexto Harry Potter já é best-seller, com 18 000 cópias colocadas à disposição do público – todas em inglês mesmo. Por não ser publicado por uma editora brasileira, The Half-Blood Prince não aparece na lista dos mais vendidos de VEJA, mas, se a integrasse, teria entrado diretamente no quarto lugar na categoria ficção.

Como lembrou o jornal londrino Sunday Times, é preciso colocar esse fenômeno em perspectiva. Rowling contabiliza 270 milhões de exemplares da série vendidos em 62 idiomas. O número é acachapante – mas impressiona menos quando comparado ao 1 bilhão de cópias da dama do água-com-açúcar, a inglesa Barbara Cartland, cujas publicações nunca causaram mobilização semelhante da mídia. O que torna a obra de Rowling singular é que, ao contrário do que se esperaria numa série, ela se fortalece a cada episódio – além, é claro, de ser dirigida às crianças, cada vez mais resistentes à sedução da palavra impressa. A escritora, é verdade, tem um fantástico arsenal de truques, que vão da capacidade para conferir verossimilhança a um mundo imaginário ao pendor para bolar reviravoltas impactantes a cada novo livro (desta vez, uma comentadíssima cena de morte). O segredo real do feitiço de Rowling, porém, é ter forjado o mais valioso dos bens: uma marca, alimentada não só pelos livros e filmes, mas por uma infinidade de produtos licenciados, que tornaram Rowling a 36ª pessoa mais rica da Inglaterra. Ela própria, porém, parece não compartilhar da preocupação de seus parceiros comerciais quanto ao fim da série, decretado para o próximo volume. “Vai ser minha chance de escrever outras coisas – e agora só sobre ‘trouxas'”, disse ela à revista Time da semana passada, numa referência ao termo que cunhou para os não-bruxos.

Harry Potter não é uma unanimidade. Pregam contra ele desde o papa Bento XVI – que em 2003, ainda como cardeal Joseph Ratzinger, congratulou por carta a autora de um livro contra o bruxinho, mencionando “as seduções sutis que distorcem a cristandade na alma, antes que ela tenha tempo de se desenvolver plenamente” – até outro papa, esse o da crítica literária, o americano Harold Bloom. Os pecados que fizeram Bloom condenar Rowling estão evidentes em The Half-Blood Prince: a prosa na melhor das hipóteses mediana, dada as redundâncias e repetições (além do uso liberal de adjetivos e advérbios, em preferência à busca pelos substantivos e verbos corretos), e a visão de mundo que não avança. Pode ser que Bloom tenha razão, e que Harry Potter não seja capaz de induzir as crianças a prosseguir em outras leituras. Mas é inegável que, graças a ele, um contingente expressivo da nova geração descobriu que ter um livro nas mãos pode significar não aborrecimento, mas deleite. O mais relevante é que houve um primeiro livro. Essa é sempre a parte mais difícil da história.