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Harry Potter e a Jornada do Herói

É sempre interessante refletir Harry Potter sob outros pontos de vista, especialmente sob teorias criadas por outros autores distantes do mundo de J.K. Rowling.

É o caso de Joseph Campbell e a sua jornada do herói, sob a qual a nossa nova colunista Juane Vaillant repensa uma série de aspectos da série. Não deixe de ler a coluna de estreia, e registrar seu comentário.

Por Juane Vaillant

Joseph Campbell é considerado por muitos a maior autoridade em mitologia do século XX. Sua principal tese, o livro “O herói e mil fases” faz uma análise de várias histórias mitológicas, mas principalmente dos clássicos “Odisseia” e “Eneida”. Mas Campbell vai muito além. Ele diz que a maior parte dos mitos, sejam eles religiosos ou lendas, se baseiam nessa sequência de fatos.

Para dar um bom exemplo do trabalho de Campbell, a saga “Star Wars”, escrita por George Lucas – que a propósito é amigo pessoal do escritor – foi completamente baseada da chamada “Jornada do Herói”, termo que foi pensado pelo próprio Campbell.

Observando a teoria, achei que seria interessante analisar a saga do nosso herói favorito segundo o método do sociólogo americano.

Vale lembrar que o autor subdividiu essas etapas várias vezes, então, ao analisar, os pesquisadores costumam divergir sobre o número exato. Porém o conteúdo da mensagem é sempre o mesmo.

Passo 1: Mundo comum
Em “A Pedra Filosofal”, somos apresentados a um Harry inseguro, tímido e isolado. Ele vive na casa dos Dursleys, que se orgulham de serem exatamente pessoas normais. Mas aí, observamos um ponto importante, que também é descrito na jornada do herói. O mundo é comum, mas o herói tem uma inquietação. Seja uma vontade de viajar, seja a falta de compatibilidade com o mundo que o cerca, ou seja por meio de um secreto desejo de não ser como as pessoas que ele conhece. No caso de Harry, ele não se encaixa. Mesmo com todos os esforços da família para que coisas anormais não aconteçam, elas acontecem. E acontecem por causa de Harry, claro.

Passo dois: O chamado para a aventura
Interessante observar, que em todas as histórias, o chamado vem de alguém que não é “comum”. Não se parece com as pessoas da cidade local do protagonista/herói. No caso de “O senhor dos Anéis” por exemplo, temos Gandalf; e em “Star Wars” Obi-Wan Kenobi. Em Harry Potter, nada mais nada menos que Hagrid. Em quase todas as jornadas, a pessoa que tira o herói da zona de conforto, se torna de certa forma, uma figura paternal.

Embora esse não seja um dos passos da jornada, os heróis quase sempre são órfãos. A escolha dos autores, longe de ser mera coincidência, é uma metáfora para a ausência, proteção e a falta de apreço pelas raízes.

Passo três: Recusa ao chamado
Aí que ta! O herói de verdade não acredita que é um herói. Não se julga especial nem melhor do que ninguém. Ele acha que é como todo mundo. Ele não sabe ainda, mas essa empatia, essa capacidade de se colocar no lugar dos outros, é que o torna um herói.

Em Harry Potter temos a oportunidade de observar Harry e Voldemort recebendo a noticia de que vão para Hogwarts. Voldemort acredita de cara. Ele sabe que é especial. Só não quer ser feito de bobo. E é isso que diferencia o vilão do herói na maioria das vezes. A fraqueza de um, é achar que não há ninguém que possa vencê-lo, enganá-lo, e a do outro, é não acreditar que alguém possa ser capaz de tamanhas crueldades.

Passo Quatro: Encontro com o mentor
Essa é sem dúvida uma das minhas partes favoritas. Isso porque dentro da sua cabeça, o herói nunca está bom o suficiente para o mentor. O herói se identifica de cara com o mentor, mas sempre acredita que o sentimento não é recíproco. E a busca para alcançar o afeto e a admiração do mesmo, muitas vezes, é que faz o herói caminhar.

Harry fica impressionado com Dumbledore antes mesmo de o conhecer. Ele é, na cabeça de Harry, o extremo oposto de tudo que ele vivia. A representação máxima da magia e do poder. Ao longo dos anos, a relação dos dois vai se estreitando, até o ponto de, em “A Ordem da Fênix”, Harry se sentir íntimo o suficiente de Dumbledore, para lhe cobrar atenção e satisfação. Mas é interessante observar que o Herói faz isso, de forma ingênua, e até um pouco infantil. Ele quer ser cuidado. Ele quer alguém que acredite nele e o faça seguir em frente.

Passo 5 (passagem do limiar) e 6 (aliados, amigos e provas)
Gosto de analisar esses dois pontos de forma conjunta, pois a ordem que acontece nem sempre é muito certa. E também porque é aqui que a história se desenvolve. Em Harry Potter, temos várias “Passagens”. Ingressar em Hogwarts, certamente foi a passagem mais importante. Mas, algumas regras e caminhos foram também grandes passagens. Aqui posso destacar a entrada no torneio Tribruxo, no quarto livro e a saída de Hogwarts em busca das Horcruxes. Essas passagens mostram que o herói está indo cada vez mais fundo da sua descoberta do mundo mágico. Apenas uma saga tão grande quanto Harry Potter, poderia mostrar aos leitores algo tão intenso e esclarecedor em termos narrativos.

O passo “6”, acontece no meio disto. O herói encontra seus amigos, passa por testes, e encontra seus inimigos. Harry tem muitos amigos, claro. Mas em termos comportamentais, os amigos que têm maior influência sobre as suas escolhas (tirando os mentores Dumbledore e Hagrid) são certamente Rony, Hermione e Sirius. Em momentos diferentes da trama, Harry segue o conselho de algum desses, e as consequências disso são cruciais para a história. Em minha modesta opinião, as maiores provações que Harry passa, não são necessariamente os duelos e guerras, e sim a morte de Sirius e o conflito com Rony no sétimo livro. Acontecimentos estes, que abalam as estruturas do herói, e que por um momento ou outro o fazem perder a fé e querer desistir da batalha final.

Passo 7 – provação máxima!
Voldemort, é obvio. Assim como muitos vilões, Voldemort é uma nuvem negra que paira sobre o herói. Eles vão se encontrar poucas vezes, porém essas vezes serão determinantes para a história e para os dois. Um exemplo clássico dessa relação íntima e complicada é a do herói dos quadrinhos “Batman” e um de seus maiores inimigos, o “Coringa”. Um representa a compenetração, a destreza e a justiça, o outro, a insanidade total. Os quadrinhos americanos são famosos por dar várias versões à mesma história, e em várias delas, o Coringa afirma que sem ele, o Batman também não precisa existir. E de certa forma, ele não está errado.

Os grandes vilões estão ali para provar até que ponto as pessoas podem chegar. Para deixar a população alerta. Para que os “pequenos vilões” não cresçam, para que os heróis surjam.

Voldemort é representado como uma pessoa que não consegue amar. Com isso, ele é a personificação da maldade, do egoísmo. E assim como todo vilão, ele entra na vida do herói por acaso. Ele não considera o herói uma grande ameaça. E esse é o seu erro. Quando Voldemort cria as Horcruxes, mas é negligente com sua vida a ponto de não se dar conta de sua perda, ele está, não “subestimando” o herói, e sim superestimando a si mesmo. O vilão perde por achar que a batalha está ganha. E a queda do vilão é justamente o ponto alto da jornada do herói.

Passo 8 – Morte, ressurreição e conquista do elixir.
Também achei prudente juntar esses dois passos para a história em questão.
O herói vai morrer. Sim, ele vai. O leitor precisa sentir que tudo pode ser perdido. Ele precisa disso para dar valor à saga. E precisa para dar valor a sua própria vida e próprias escolhas. Por isso o herói deve morrer. E deve fazer isso em nome de um bem maior.

Harry faz isso. E faz isso apoderado do que ele pensa ser o “elixir”. Algo capaz de ajudar a todos e curar ele mesmo. As relíquias da morte. Com elas, ele se sente seguro para encontrar Voldemort, e porque acha que a conquista dessas ferramentas, vai ajudar a todos.

Passo 9 – Volta pra casa transformado.
Quando Joseph Campbell resume a sua própria teoria, a parte mais importante para ele é essa. A conquista do verdadeiro elixir. O herói acha que vai encontrar um lugar, uma pessoa, um objeto, que vai curar tudo e todos. Mas ele não encontra. Todas as ferramentas que ele consegue juntar, não são válidas da hora da grande provação.

Mas essa é afinal, a jornada de herói. E não uma simples busca. O que acontece, é que o herói volta transformado. E as transformações que ele sofreu, é que vão mudar os rumos da história e melhorar a vida das pessoas.

Observem que foi Harry, apenas Harry, que doando sua vida pelos seus amigos e conhecidos, que os protegeu da ameaça final de Voldemort. Harry, que foi aprendendo durante a saga a ser um líder, um exemplo, um herói.

Mas o diferencial aqui é que a “casa” que ele volta, não é o mundo normal e sim Hogwarts. A casa que ele escolheu. Assim como escolheu não ir para a Sonserina ou ser amigo de Draco Malfoy. Harry é dessa forma, além de um herói complexo, um protagonista “eficiente”, pois é a personificação da mensagem do livro. Você tem escolhas, mesmo que muitos digam que não.

Juane Vaillant gosta de estrear como uma heroína.

Você pode ver aqui um vídeo com o próprio Campbell explicando a sua Teoria: