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Os neocomensais da morte

É terrível imaginar que, após tantos eventos hediondos pelos quais a humanidade já passou, ainda não tenhamos a capacidade de conviver de maneira pacífica uns com os outros. As pessoas às vezes não conseguem conviver em harmonia com os outros porque estes são, em suas concepções torpes, “diferentes” dela. Parecem imaginar a diferença com um mal, e não como um dos fatores que determina a beleza da humanidade.

Na coluna de hoje, Luciana Barbosa estimula a reflexão sobre esse assunto e aborda um tema sobre o qual muitos de nós ainda não haviam pensado: será que, após a derrota de Voldemort, ainda não teremos outras gerações que seguirão imaginando como certa a teoria da superioridade dos bruxos de sangue-puro? Leia o texto e reflita com a nossa colunista!

Por Luciana Barbosa

As semelhanças que envolvem as figuras de Voldemort e Hitler e as guerras em que estiveram envolvidas é inegável. Para quem olha de longe, pode parecer que Voldemort é apenas mais um inverossímil malvado na tentativa de dominar o mundo e subjugar a humanidade. Entretanto, estamos tratando de uma figura que infelizmente não está tão distante do que somos, ou das monstruosidades que nós, seres humanos, cometemos ao logo da história.

A trama escrita por Joanne Rowling traz em seu enredo temas muito frequentes na história da humanidade. A discriminação racial e o preconceito de classe mostram sua cara no comportamento anti-trouxas, na perseguição aos bruxos mestiços e no desrespeito aos bruxos menos favorecidos financeiramente. Estes elementos são o pano de fundo para as teorias de dominação dos trouxas que o Lorde das Trevas utiliza para recrutar seu exército. Fora do mundo mágico, Adolf Hitler se apoiou na discriminação racial para destacar a raça ariana das demais e justificar a sua sede pelo poder. Os indivíduos da “raça pura” deveriam subjugar os outros. Nada muito diferente dos planos que Voldemort tinha para os bruxos de sangue puro. E os pontos em comum entre os dois não param por aí.

As semelhanças entre Você-sabe-quem e Hitler não são mera coincidência. Assim como Voldemort, Hitler envergonhava-se de sua origem humilde. Ambos eram órfãos inteligentes (Tom jamais conviveu com os pais e Hitler perdeu os dele cedo) buscando destaque entre a multidão. Enquanto Hitler conquistava multidões com sua habilidade em discursar, Voldemort despertava a admiração dos bruxos com a sua enorme perícia em magia e carisma. A frieza com que tratavam suas inúmeras vítimas os torna ainda mais próximos.

As guerras bruxas que envolvem Voldemort apresentam muitas semelhanças com a Segunda Guerra Mundial. Nas fileiras de Hitler e Voldemort estão servidores devotados a seus líderes e à sua fraca teoria de supremacia. Os Comensais da Morte convivem com as mesmas contradições que os nazistas seguidores de Hitler. Os primeiros defendem a supremacia dos bruxos de puro sangue, mas não estão isentos de sangue trouxa, já que praticamente não existem linhagens onde não tenha havido mistura entre bruxos e não-bruxos. A hipocrisia é bem parecida com a vivida pelos nazistas. A tal raça pura que defendem e afirmam pertencer não existe.

Joanne Rowling nos deixou valiosos ensinamentos sob a forma de histórias mágicas. Suas mensagens, além de divertir, despertam uma postura crítica no leitor. A estreita ligação entre o mundo bruxo e o real nos faz discutir a postura humana de maneira lúdica e convidativa. Em um mundo repleto de injustiças, a capacidade de questionar é valiosa. A saga Harry Potter nos dá isso sem abrir mão da fantasia. Não construir novos Adolf Hitler fica mais fácil quando lemos a derrota de Voldemort.

Quando Joanne Rowling criou Voldemort e os Comensais da Morte em seus livros, estava usando a realidade como base para a fantasia. Já analisamos aqui as semelhanças entre Voldemort e Adolf Hitler, cruzando as guerras que envolveram estas figuras e as fracas teorias que as moveram. Acontece que a derrocada de Hitler não impediu a proliferação do neonazismo.

Olhando para nossa realidade atual, é inevitável refletir sobre o mundo criado por Rowling. Se por aqui as ideias de Hitler ainda encontram seguidores através dos neonazistas, talvez, no mundo bruxo, as gerações posteriores a Harry ainda tenham que enfrentar as teorias malucas que defendem a superioridade dos puro-sangue. Talvez haja gente estampando a Marca Negra por lá, assim como ainda há gente adorando a suástica por aqui. Os Neocomensais da Morte ainda podem estar pregando o ódio na penumbra das vielas bruxas, como seus irmãos de carne e osso ainda insistem em fazer por aqui, apesar das lições históricas.

Luciana Barbosa gostaria de viver numa sociedade onde todos pudessem ser respeitados como são – e eu também!