Magia do Cinema

Magia do Cinema: “Dois Lados do Amor”

Evandro Lira, estudante de Cinema e Audiovisual da UFPE e colaborador do Potterish, vem à coluna Magia do Cinema nesta quinta-feira (26) com a crítica de “Dois Lados do Amor”, um filme intrínseco lançado em 2015 pela California Filmes, estrelando James McAvoy e Jessica Chastain.

“A obra é muito mais vida real do que parece, onde às vezes as soluções não vêm de forma fácil, ou nem mesmo vêm. Dono de uma densidade impressionante, te deixa com uma sensação de vulnerabilidade. Afinal somos uma sociedade que ama, e pensar que esse motor que nos conduz, o amor, nem sempre é o suficiente para determinar nossa felicidade, é desolador.”

Leia a crítica na íntegra acessando a extensão do post.

“Dois Lados do Amor”
Crítica cinematográfica por Evandro Lira

Beira ao assustador pensar no tamanho do poder que exercemos uns sobre os outros todos os dias. E quando escolhemos alguém para viver ao nosso lado no que gostamos de chamar de “para sempre”, esse poder é ainda maior. É tocando nessas questões inerentes ao ser humano que “The Disappearance of Eleanor Rigby” (no original) descarrega sobre o espectador o peso que uma relação suporta e leva consigo depois que uma tragédia se abate sobre ela. É sobre como lidamos com nós mesmos e com quem amamos depois que esse poder involuntário modifica gravemente nossas vidas.

A maneira como o estreante Ned Benson resolveu contar essa história é no mínimo fascinante. A princípio, dois filmes foram lançados no Festival Internacional de Cinema de Toronto em 2013, com os subtítulos “Ele” e “Ela”. Eles narram uma mesma trama sob perspectivas diferentes. Em um é possível acompanhar a vida de Connor após o rompimento com a esposa Eleanor, e no outro conhecemos a história da mulher, que não é mais a mesma depois de tudo o que aconteceu. Em 2014, estreou na sessão Un Certain Regard do Festival de Cannes a versão “Eles”, que com um apelo mais comercial visa unir os dois filmes, ampliando a visão do espectador para ambos os protagonistas e fazendo da obra não só um exemplo de roteiro bem construído como também um eficaz exercício de montagem.

Mesmo com dois longas diferentes que exploram profundamente seus protagonistas, “Eles” é autossuficiente. Assistir a somente a ele não prejudica o entendimento e nem mesmo subtrai a singularidade da produção, que em duas horas dá espaço para o casal principal e ainda para os coadjuvantes. Isso não quer dizer, no entanto, que o espectador não sinta a necessidade de adentrar ainda mais no mundo melancólico daqueles personagens. A opção de ver a trilogia não deve ser descartada. E caso seja essa a escolha do leitor, o mais recomendável, sob meu ponto o de vista, é assistir na ordem “Eles”, “Ele” e “Ela”, já que os dois últimos revelam cada um cenas inéditas do que foi visto em “Eles” e também pela complexidade e motivações de Eleanor Rigby, que se tornam muito mais compreensíveis e cristalinas quando digeridas dessa forma.

Aliás, os personagens são o que mais impressiona em “Dois Lados do Amor” – nome esse que, como se não fosse brega o suficiente, ainda camufla o brilhante título original. Parte da grandeza que transforma os personagens de “The Disappearance” em pessoas tão verdadeiras deve-se ao roteiro de Benson, que tem uma visão delicada e ao mesmo tempo cruel sobre as relações humanas. Seus intérpretes não ficam de fora, extraem do roteiro com maestria toda a força, anseios e frustrações dos seus personagens, assim como o trabalho de direção de arte, chefiado por Kelly McGehee, que compõe os ambientes com a mesma sutileza e realismo que o filme preza do início ao fim.

É incrível que mesmo com pouco tempo de tela, os atores coadjuvantes dão um show em cena. Impossível não gostar imediatamente da professora vivida por Viola Davis, uma mulher prática e espirituosa que, assim como todos os personagens secundários, exerce uma força única na personagem principal. Simpatizamos com a amizade de Eleanor e sua irmã (Jess Weixler), de Connor com seu sócio (Bill Hader); e com a densidade das relações paternas, um Connor abalado, um pai (Ciarán Hinds) igualmente exausto de relacionamentos, uma Eleanor traumatizada com tantas perdas, e seus pais, que são totalmente diferentes um do outro, interpretados por Isabelle Huppert e William Hurt.

O casal principal é vivido por dois astros de Hollywood em ascensão: James McAvoy – que atualmente estrela a franquia da Fox, “X-Men” – e Jessica Chastain – duas vezes indicada ao Oscar por “Histórias Cruzadas” (2011) e “A Hora Mais Escura” (2012). Em “Dois Lados do Amor”, ele é Connor Ludlow, dono de um restaurante falido, filho de um homem bem sucedido nos negócios, e ela é a Eleanor Rigby do título original, interessada em artes, filha de um acadêmico e de uma imigrante francesa. Somos apresentados aos dois logo na primeira cena com uma sequência divertida, a clássica fuga do bar sem pagar a conta. Exatamente nessa cena já nos encantamos com os personagens, “Você ainda me amaria se eu não pudesse pagar o jantar?”. Uma direção artística e encenação cuidadosa e realista fica perceptível logo nesse primeiro plano, ambos os atores bem à vontade, sem pressa para dar as falas, sem excessos, fazendo até lembrar a naturalidade de Jesse e Celine da trilogia “Before”, de Richard Linklater.

E em seguida, tudo aquilo simplesmente havia desaparecido. Uma elipse nos coloca a par de uma Eleanor suicida e de um Connor machucado, estressado e perdido sem sua esposa. Aos poucos, a trama inteligente vai nos ajudando a montar as peças do quebra-cabeça; afinal, não foi um simples rompimento, Eleanor tinha tentado se matar e agora estava totalmente afastada, evitando cruzar, falar com e sobre o seu marido.

Jessica Chastain está deslumbrante. Entrega uma personagem complexa, forte e sensível ao mesmo tempo. Eleanor Rigby não é uma pessoa solitária, como canta a música dos Beatles da qual seu nome foi inspirado. Ela tem amigos, tem família, mas simplesmente não consegue e nem quer ser ajudada por nenhum deles. Uma verdadeira fortaleza, não verbaliza seus sentimentos, espera que você os adivinhe, “Gostaria que você pudesse ler meus pensamentos”, chega até a dizer. Mas é graças a Jessica Chastain que nos envolvemos e passamos a entender o incompreensível. Seu olhar revela a dor, seu silêncio provoca.

Por sua vez, James McAvoy está seguro e apaixonante em cena. Connor está sempre assumindo o problema para os outros, ainda que não o verdadeiro, aquele que levou ao afastamento do casal. Tenta estabelecer contato com Eleanor constantemente, mas ela o afasta e isso só deixa os dois cada vez mais despedaçados.

Durante toda projeção entendemos que os personagens sabem mais. O roteiro não faz questão de esconder isso, vez outra ele dá pistas, mas sem pressa e sem nenhum diálogo expositivo. Os diálogos são uma maravilha à parte: cada frase dita, cada silêncio de interrupção e de reflexão é um espelho do espectador que se vê afetado pela melancolia das palavras.

Melancolia caracteriza bem “Dois Lados do Amor”. Desde sua composição sonora, marcada pelo som alternativo do americano Son Lux, até a bela fotografia de Christopher Blauvelt, que quando não põe Eleanor numa profusão de sombras, deixa-a complementar-se ao cenário, com seus cabelos ruivos se inteirado às cores quentes sempre resfriadas.

É possível notar até mesmo um certo apreço do diretor pela cultura europeia. Os Beatles estão no título do filme, no nome da protagonista, na parede do quarto de Eleanor, e aí você pensa em como isso poderia ficar brega e forçado, mas não, tudo nessa obra soa casual, natural. É de um realismo impressionante e formidável como tudo se encaixa. Há ainda na parede do quarto de Eleanor o pôster de “Um Homem, Uma Mulher” (1966), de Claude Lelouch, um filme encantador que também conduz uma história de luto e relacionamento. A escalação da musa francesa Isabelle Huppert como mãe de Eleanor, que por sinal está excelente, vem para ratificar essa teoria. Até me atrevo a dizer que há uma certa aura do bom cinema francês aqui.

Engana-se quem acha que ao final de “The Disappearance of Eleanor Rigby: Them” vai obter todas as respostas que procurou e que todos os problemas serão resolvidos. A obra é muito mais vida real do que parece, onde às vezes as soluções não vêm de forma fácil, ou nem mesmo vêm. Dono de uma densidade impressionante, te deixa com uma sensação de vulnerabilidade. Afinal somos uma sociedade que ama, e pensar que esse motor que nos conduz, o amor, nem sempre é o suficiente para determinar nossa felicidade, é desolador.

Direção e roteiro: Ned Benson.
Duração: 122 minutos.
Estreia: 12 de março de 2015.

Evandro Lira é estudante de Cinema na Universidade Federal de Pernambuco e colaborador do Potterish.