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Perigos e Tentações de um Vira-Tempo

Você gostaria de retornar ao passado? Gostaria de ter a chance de voltar para mudar o curso de algum ponto da sua história pessoal, ou de corrigir alguma atitude da qual você não gosta de lembrar?

Nilsen Silva trata justamente desse tema na coluna de hoje. Não deixe de ler e comentar!

Por Nilsen Silva

Acho que não seria exagero dizer que a maioria dos fãs de Harry Potter, a partir do terceiro volume da saga, ficou se perguntando nas coisas que faria se tivesse a honra de ter um Vira-Tempo em mãos. Portar um dos objetos mágicos mais importantes seria, com certeza, uma aventura incrível. E uma tentação também. Afinal, quem não gostaria de mudar alguma coisa no passado? Quem não gostaria de corrigir um erro que até hoje dá náuseas e provoca um girar de estômago involuntário?

Quando o hipogrifo Bicuço ataca Draco Malfoy na aula de Trato das Criaturas Mágicas, em O Prisioneiro de Azkaban, seu pai decide usar erroneamente sua influência no Ministério da Magia para coagir a Comissão para Eliminação de Criaturas Perigosas a entrar em ação, condenando a criatura à morte. Porém, com a ajuda e orientação de Dumbledore, Harry e Hermione conseguem voltar no tempo e evitar a execução – e, de quebra, também conseguem libertar Sirius Black de seu terrível destino com os dementadores.

A ação de resgatar Bicuço foi digna e compreensível. Afinal, um animal inocente foi salvo das cruéis garras da morte. Mas isso dá abertura para alguns questionamentos importantes: por que J.K. Rowling escolheu justamente essa criatura, e apenas ela, para ser absolvida? Por que ninguém teve a ideia de voltar no tempo para salvar os pais de Harry, por exemplo, que morreram injustamente? Por que ninguém quis impedir que Sirius caísse no véu? Por que nem mesmo Edwiges foi poupada de um ataque covarde e mesquinho?

Ao longo dos livros de Harry Potter, nos deparamos com diversas situações que poderiam muito bem ser evitadas e/ou resolvidas com uma ou duas voltas da tentadora ampulheta dourada. Isso vai dos acontecimentos mais banais, como uma poção que deu errado ou um atraso que poderia ser evitado, até coisas mais importantes, como a inscrição inesperada de Harry no Torneio Tribuxo e, claro, todas as mortes com as quais nos deparamos, principalmente no último volume.

A morte, aliás, é uma questão delicada. Quem possui o direito de decidir quem morre de vez e quem retorna do mundo dos mortos? Por mais que personagens queridos tenham deixado muitas feridas nos que ainda vivem, não se pode simplesmente ignorar uma fatalidade. O verso que afirma que a única certeza que temos neste mundo é de que vamos deixá-lo é certo. A não ser que uma pessoa decida tirar a própria vida, a morte é um dos maiores mistérios dos seres humanos.

Ninguém programa a própria morte. Ela vem e te derruba porque a sua hora chegou. Usar o Vira-Tempo para contrapor isso seria, no mínimo, absurdo. E antiético. No entanto, foi feito em O Prisioneiro de Azkaban, com a autorização de Dumbledore. O meu palpite é que isso foi visto com olhos bondosos por Bicuço ser uma criatura inocente e instintiva que não tem noção de seus próprios atos. As mortes dos humanos, por outro lado, foram mais intrínsecas – eles sabiam em que estavam se metendo quando decidiram batalhar. E todo mundo morre de velhice ou por algum acidente. Assim como os animais. Ao meu ver, ter utilizado o Vira-Tempo para salvar o hipogrifo foi uma atitude digna, mas moralmente conflitante.

O Vira-Tempo é um objeto perigoso. Além de seu uso ser controlado pelo Ministério da Magia, cometer um erro na hora de voltar no tempo poderia ser simplesmente catastrófico. A própria professora McGonagall, quando concordou em dar o Vira-Tempo a Hermione para que ela conseguisse assistir a mais de uma aula ao mesmo tempo, alertou-a para não se deixar ser vista por ninguém, principalmente por ela mesma, ou coisas horríveis poderiam acontecer com seus eus passados ou futuro por engano. Se alguém me perguntasse, aposto que deve ter sido extremamente tentador para Hermione usar o Vira-Tempo além do permitido.

E é tentador mesmo. Mas até que ponto seria saudável ficar corrigindo erros na vida, passando uma borracha em tudo e aparando todas as arestas? Até que ponto seria correto virar o senhor da morte e impedir alguém de deixar este mundo por mero egoísmo? Não acho que ninguém aprenderia corrigindo erros e deixando tudo perfeito. A morte também vem para ensinar, para dar um choque de realidade e para fermentar o amadurecimento – seja ela precoce ou no tempo certo. Viver, errar e aprender com nossos erros é o melhor que podemos fazer enquanto vivermos.

Nilsen Silva só usaria o Vira-Tempo para tirar uma nota maior naquela prova de História do Jornalismo.