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O talento de Rowling

Quem gosta de Harry Potter é naturalmente apaixonado por leitura. Nosso colunista Márcio Oliveira não foge à regra, e nos presenteia com uma análise a respeito do talento de J.K. Rowling, fazendo breves comparações com um dos maiores escritores que o Brasil já teve: Machado de Assis.

Na análise deste domingo, nosso colunista aborda essa temática em seu mais novo texto. Não deixe de ler e comentar!

por Márcio Oliveira

Embora haja chance de ela, Rowling, nunca fazer parte do grupo de “autores de nomeada” (leia-se: do cânone literário ocidental), ela tem muito talento. (E convenhamos: só ao futuro cabe dizer o que fará parte do cânone.)

Leiamos um trecho de Harry Potter e o Cálice de Fogo (a tradução, naturalmente, é a de Lia Wyler):

“A polícia nunca vira um laudo mais esquisito. Uma equipe de legistas examinara os corpos e concluíra que nenhum dos Riddle fora baleado, envenenado, esfaqueado, estrangulado, sufocado ou, pelo que sabiam, sofrera qualquer tipo de violência. Com efeito, continuava o laudo, em tom de inconfundível perplexidade, os Riddle, tirando o fato de que estavam mortos, pareciam gozar de perfeita saúde. Os legistas observaram (como se estivessem decididos a encontrar alguma coisa errada nos cadáveres) que cada membro da família tinha uma expressão de terror no rosto — mas, segundo afirmava a frustrada polícia, quem já ouvira falar de alguém morrer de pavor?”

Agora, leiamos um trecho de Helena, de Machado de Assis, o maior escritor que o Brasil já teve:

“O conselheiro Vale morreu às 7 horas da noite de 25 de abril de 1850. Morreu de apoplexia fulminante, pouco depois de cochilar a sesta, — segundo costumava dizer, — e quando se preparava a ir jogar a usual partida de voltarete em casa de um desembargador, seu amigo. O doutor Camargo, chamado à pressa, nem chegou a tempo de empregar os recursos da ciência; o padre Melchior não pôde dar-lhe as consolações da religião: a morte fora instantânea.”

Nos dois trechos é possível encontrar o humor com que é tratada a questão da morte. Ao lermos: “…tirando o fato de estarem mortos, pareciam gozar de perfeita saúde”, e ao lermos: “…nem chegou a tempo de empregar os recursos da ciência”, vemos o modo finamente humorado e afiadamente irônico de dois literatos de descrever a morte. Fica claro que ela é inevitável, quer se morra de apoplexia (derrame cerebral), como o conselheiro Vale, quer se morra vítima da maldição da morte, como a família Riddle. Ainda que se possa apontar a causa da morte inesperada de alguém, como a do conselheiro Vale, não é possível, paradoxalmente, mesmo com os recursos da ciência (ou, no caso de Harry, com os recursos da magia) explicar nem evitar a morte. Os médicos, de modo pedantesco, usam a expressão falência múltipla dos órgãos (mesmo quando se morre de morte natural), e os delegados de polícia usam a expressão ir a óbito, e no entanto são incapazes de dizer por que morremos e por que o coração bate e o cérebro funciona, ou seja: por que vivemos.

Poderíamos apontar outras semelhanças de conteúdo e estilo, e também de estrutura, como os recursos folhetinescos que J.K. Rowling e Machado de Assis empregaram, ou as semelhanças iniciais que existem entre D. Úrsula, personagem de Helena, e tia Petúnia. A expressão recursos folhetinescos é um tanto pedantesca — e imprecisa. Referimo-nos, com ela, à capacidade de alimentar dúvidas e suspeitas e surpreender com o desfecho — capacidade essa que a autora tem de sobra. Tenhamos em mente que folhetim, ao contrário do que pensam certos jornalistas brasileiros, não é o mesmo que novela ou telenovela: folhetim (coisa comum no século XIX, em que viveu Machado de Assis) é o fragmento, provavelmente em forma de capítulo, de novela, de romance, publicado numa seção de jornal (impresso). Aí está: em forma de capítulo. Em cada capítulo de um livro de Harry Potter uma nova informação, e uma nova teoria, uma nova suspeita.

O legado da autora, nem é preciso dizer, reside na leitura, a qual é agradável em virtude do estilo, já comparado e reconhecidamente bom. E esta foi sua maior magia: fazer uma geração gostar de ler. E como poderia ser diferente? Com uma história repleta de mistérios, intrigas, alusões ao preconceito racial e social (trouxas e bruxos, Dursleys e Malfoys) e artimanhas políticas do Ministério da Magia somados aos seres fantásticos, lugares incríveis e personagens verossimilhantes, seria de surpreender se ela não fosse reconhecida.

O que faz de Rowling uma mulher admirável não é o dinheiro, nem a fama, que estas são coisas frívolas, ainda que sejam consequência do trabalho duro (e, naturalmente, de razões externas à literatura). O que faz da autora um ídolo é o seu poder criador, a sua imaginação, que em nada perde para a de outros escritores. Com a varinha mágica da escrita, provou que é possível sonhar em meio às dificuldades, e mostrou que a imaginação é imprescindível. É com a imaginação que se criam novos aparelhos eletrônicos, e é com ela que o mundo pode mudar: sem essa tal não há progresso, nem mudanças.

Que outras histórias poderá J.K. Rowling nos contar? Com tinta e papel, ela responderá à pergunta: saberá dar forma ao conteúdo de suas histórias: não lhe faltam engenho e arte.

Entre um Harry Potter e outro, Márcio Oliveira não dispensa um bom autor brasileiro.