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Um caldeirão borbulhante de amor

Vários personagens já foram tema de colunas do Potterish, incluindo diversas mulheres. Porém, Igor Ferreira destaca uma mãe vital na história de ‘Harry Potter’: Merope Gaunt, a mãe de Lord Voldemort.

Com as descrições do livro Enigma do Príncipe, a coluna deste domingo relembra a trajetória sofrida de Merope, a violência que sofreu, a poção do amor que usou e sua morte após dar Tom Riddle à luz.

por Igor Ferreira

Diversos personagens passam-nos despercebidos durante os sete volumes da saga Harry Potter e embora alguns deles tenham papel definitivo em toda a história, muitas vezes são esquecidos ou não lhes é dada a devida atenção. Entretanto eles estão lá, ainda que escondidos entre os elementos exuberantes do mundo da magia, tal como J.K. Rowling descreve Mérope Gaunt.

“…uma garota cujo vestido cinzento e rasgado era exatamente da cor da parede de pedra encardida às suas costas”.

Mergulhando nas lembranças de Beto Ogden, nem o próprio Harry, que estava inserido na cena, consegue perceber a presença daquela garota de “cabelos escorridos e sem vida e o rosto comum, pálido e feioso”. A descrição de Jo é, pois, perfeita para destacar a participação de Mérope em seu contexto familiar, tão notória quanto a importância das pedras que formavam a parede do casebre em que vivia com o pai e o irmão.

Ainda neste trecho, mais adiante, nossa autora frisa o papel de Mérope como uma simples empregada, remexendo nas caçarolas e panelas imundas na cozinha, com um aspecto um pouco mais limpo do que o restante de sua família embora nunca houvesse se tido notícia de alguém tão arrasado. Assim ela era encarada tanto por Morfino quanto por Servolo, uma reles funcionária obrigada a manter a casa no mínimo habitável para o conforto dos tão nobres sucessores de Salazar Sonserina, e esta submissão, comprovada em todas as passagens em que ouvimos falar de Mérope Gaunt, causou danos irreparáveis sobre aquela moça, dentre os quais posso destacar o impacto sobre a habilidade mágica da jovem.

Como bem analisa Dumbledore: “Acredito que os seus poderes mágicos não se manifestassem favoravelmente enquanto ela estava aterrorizada pelo pai”. E para piorar tal situação, Morfino e Servolo, a cada erro da jovem, ofendiam-na com xingamentos que realmente feriam e torturavam a mente de Mérope.

“Ouviu-se um estrondo metálico. Mérope deixara cair uma panela.

– Apanhe isso! – berrou Gaunt para a filha. – Isso, fuce o chão como uma trouxa porca, para que serve a sua varinha, seu saco de estrume?”

Mas o ódio dos Gaunt por trouxas e mestiços, apoiado na sua linhagem “nobre” de sangue puro, como insistia Servolo em ressaltar, foi finalmente atestado e punido pelas leis mágicas, enviando pai e filho para Azkban. Talvez se desconhecêssemos o restante da história poderíamos pensar em como a pobre Mérope conseguiria se arranjar sozinha no mundo, mas assim que compreendemos o carma em que a pobre menina vivia entendemos também a libertação que a prisão dos outros dois Gaunt representou para Mérope.

Sozinha na paupérrima habitação em Little Hangleton, a única mulher descendente de Cádmo Peverell teve liberdade suficiente para concretizar o que o pai tanto repudiava: seu amor por um trouxa. Incapaz de encantar Tom Riddle com seus atributos físicos, o coração desesperado pulsando dentro do peito, Mérope encontrou em Amortentia a única possibilidade de ter junto de si o homem que amava. Entretanto, ela desconhecia os ensinamentos que Slughorn confere à turma de Harry no seu sexto ano: “A Amortentia na realidade não gera amor, é claro. É impossível produzir ou imitar o amor”.

Antes de prosseguir, é necessário fazer uma pausa para analisar um ponto específico dessa tragédia digna de Shakespeare: como Mérope fez Tom Riddle tomar a poção? Segundo Dumbledore “não teria sido muito difícil, em um dia de calor, quando Riddle estivesse cavalgando sozinho, persuadi-lo a beber uma água” onde haveria de estar a poção misturada. Eu, no entanto, ainda que ache muito plausível esta hipótese, considero difícil que Tom aceitasse qualquer coisa, mesmo água, proveniente da “casa pertencente a um velho pobretão chamado Gaunt e aos filhos dele”. Na passagem anterior a essa ele trata com certo desprezo os moradores do casebre além das terras de sua família, e ainda que não inclua expressamente Mérope nas suas considerações também não deixa de excluí-la. Sustento, assim, muito mais a possibilidade de Mérope ter entrado sorrateiramente na casa dos Riddle, passando-se por alguma empregada, e depositado com cuidado no copo de seu amado algumas gotas da poção. Suposições à parte, avancemos.

O fato é que qualquer que tenha sido o modo de enfeitiçar Tom Riddle, o resultado foi momentaneamente positivo. Abandonando a família e causando um escândalo no vilarejo, o filho dos ricos proprietários fugiu com a filha do pobretão vagabundo, que regressou algum tempo depois encontrando três dedos de poeira e um bilhete explicando a deserção da filha, fato que influenciou a morte prematura de Servolo e evidenciou de uma forma curiosa o estranho, mas existente, amor que nutria pela filha.

Passado algum tempo do casamento, quando Mérope já carregava em seu ventre aquele que se tornaria o bruxo das trevas mais temido de todas as eras, ela decidiu, convencida de que paixão tornara-se mútua e que a concepção de um filho seguraria Tom junto de si, interromper o uso de Amortentia e contar a seu amado a verdade sobre a sua condição. Riddle retornou a Little Hangleton imediatamente, abusado em sua boa-fé e ludibriado (para não dizer que fora enfeitiçado), e nunca quis saber que destino tomara Mérope ou o próprio filho.

Daqui em diante os caminhos trilhados por Mérope são ainda mais obscuros, havendo poucos momentos em que se pode afirmar com certeza seus passos. Sozinha e desiludida, não é difícil imaginar aquela menina estrábica andando descompassada pelas ruas de Londres acariciando o ventre sob o vestido velho e desbotado banhado por lágrimas. Mérope viveu à mercê do destino acompanhada apenas pelo filho e a única lembrança que levara de sua família: o precioso medalhão de Salazar Sonserina, que vendeu, levada pelo desespero e pela vontade de sobreviver, ao miserável Carátaco Burke por meros dez galeões nas vésperas do Natal.

O desapego do medalhão, ao meu ver, porém, representa muito mais do que a necessidade de Mérope de sobreviver. Esse fato simboliza a distinção extrema entre a jovem e sua família, pois ao contrário de Servolo e Morfino, que dariam a própria vida pela honra da sua ascensão, Mérope escolhe lutar (sem usar magia, pois seus poderes haviam, após a evasão de Tom, realmente minado) para dar a vida a seu único filho, fruto do seu amor por um trouxa. Aquela criança seria um mestiço tão odiado por seu avô quanto qualquer outro, mas ainda assim ela buscou forças para dar-lhe à luz, o que fez no último dia do ano de 1926 antes de falecer, deixando a seu filho apenas o nome que um dia ele repudiaria.

Finalizando essa análise que já vai longa demais, quero por em pauta somente mais dois pontos. Primeiro, se é possível reconhecer claramente a distinção que deve ser feita entre Mérope e seus familiares, não podemos deixar de notar um traço típico que prevalece no avô, no tio e na mãe de Lorde Voldemort: a arrogância. É indiferente falar desse aspecto em Morfino e Servolo, uma vez que ele salta aos olhos em suas figuras. Em Mérope, entretanto, pode ser que passe despercebido, mas o simples fato de tentar obrigar Tom Riddle pai a se apaixonar por ela já delimita um poço de arrogância ainda que “acidental” morando dentro dela.

“Mérope Riddle preferiu morrer apesar do filho que precisava dela, mas não a julgue com tanta severidade, Harry. Ela estava enfraquecida pelo longo sofrimento e nunca teve a coragem de sua mãe.”

Ainda que a segunda frase da colocação acima abrande o efeito da primeira e esteja completamente correta, Dumbledore é superficial demais ao dizer que Mérope escolhera morrer. De forma alguma! Mérope foi corroída pelo seu sofrimento, as suas desilusões, e é mais do que plausível sugerir que ela pudesse estar afetada por alguma doença além do dano psicológico do qual padecia. Aquela jovem não se entregou à morte, como se pode pensar ao ler a afirmação de Dumbledore. Seu destino foi fruto do que ocorreu durante toda sua existência, o passado de humilhação, abandono, miséria, fome e angústia. Mérope não se rendeu. Ela lutou até não poder mais pela sua vida e de seu filho, mas foi vencida pela morte que chega até mesmo para aqueles que têm mais vontade de viver.

Igor Ferreira jamais usará a poção do amor com alguém.