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A Hogwarts brasileira

Imagine se, durante algum livro de ‘Harry Potter’, um personagem de Hogwarts decidisse visitar uma escola de bruxaria brasileira. Como ela seria? Quais costumes seriam mantidos ou diferentes? A carioca Renata Ventura não só criou esse mundo, como o apresentou no romance chamado ‘A Arma Escarlate’.

[meio-2]Seguindo a jornada de Hugo, um rapaz que cresceu testemunhando o tráfico no Rio de Janeiro, o leitor vai entender que, apesar da magia ser a mesma, o ambiente brasileiro tem seus próprios medos, configurações e ameaças. Leia a a resenha e conheça o mundo mágico ‘traduzido’ para o Brasil.

“A Arma Escarlate”, de Renata Ventura

A Hogwarts brasileira Tempo: para ler pouco a pouco em intervalos durante a semana
A Hogwarts brasileira Finalidade: para ficar na ponta da cadeira
A Hogwarts brasileira Restrição: para quem não gosta de coisas moderninhas
A Hogwarts brasileira Princípios ativos: Rio, bruxaria, tráfico, escola, amizade.

A Hogwarts brasileira

Na nota da autora, que antecede “A Arma Escarlate”, Renata Ventura explica e justifica sua missão. Segundo ela, J.K. Rowling respondeu a alguém que perguntou se ela escreveria um romance sobre uma escola de bruxaria nos Estados Unidos dessa maneira: “Não, mas fique à vontade para escrever o seu”.

A Hogwarts brasileira

Ventura ‘abrasileirou’ Hogwarts, Harry Potter e todo o universo bruxo em seu romance. Não se trata de uma cópia, mas sim de uma ‘tradução’ de costumes, hábitos e conflitos. As referências ao trabalho de Rowling aparecem em cada página, mas a autora teve sucesso na difícil missão de interpretar as duas culturas.

Vamos começar pelo protagonista. Hugo Escarlate se chama, na verdade, Idá. Ao entrar na escola Nossa Senhora do Korkovado (que se localiza ‘dentro’ do Corcovado), o rapaz espontaneamente assume uma outra identidade. Com isso, já se percebe a primeira grande diferença entre ele e Harry Potter: Hugo não tem um nome no mundo bruxo para honrar.

Harry chegou a Hogwarts como uma estrela: o menino que sobreviveu, odiado por alguns e superprotegido por outros. O bruxinho britânico é um herói autêntico porque, a cada decisão que tomava, lembrava do legado de seus pais. Hugo não tem esse exemplo: seu pai fugiu quando ele era pequeno, sua mãe é uma boa pessoa, mas irresponsável. Quem ele admira realmente é sua avó, que tem um papel importante na narrativa.

Hugo é um anti-herói e isso tem a ver com o ambiente em que foi criado: num barraco no morro Dona Marta, sem dinheiro ou perspectiva, convivendo com a rotina perigosa do tráfico e testemunhando diversas injustiças. Enquanto Harry sofria ‘bullying’ de Duda, Hugo/Idá via pessoas queridas sendo ameaçadas, torturadas e mortas. É um mundo infinitamente menos cor-de-rosa do que a Rua dos Alfeneiros.

De qualquer maneira, tanto para Hugo quanto para Harry, a escola de bruxaria é um escape da vida horrível que levavam até então. Korkovado não tem separação de casas (“divisão é coisa da Europa”), mas segue um estilo de aulas e submissão às autoridades parecido com o de Hogwarts.

Hugo não tem um Rony, mas contra com os Pixies. Esse é o nome de um grupo que lembra um grêmio ou centro acadêmico universitário. Seus integrantes querem revolucionar o método de ensino, questionam a direção e os professores, protestam, são descolados e têm um respeito e influência sobre os outros alunos. Ao se juntar a esse grupo, Hugo se identifica rapidamente com Capí, que se torna seu melhor amigo. Sereno, íntegro e corajoso, Capí é uma espécie de irmão mais velho que faz Hugo olhar a vida com menos impulsividade e mais clareza.

A ‘Hermione’ é Gislene. Sabe-tudo, teimosa, intrometida, mas com plena consciência do que é certo, capaz de ter compaixão e de se sacrificar pelo bem dos outros. A amizade entre ela e Hugo é bem menos intensa e fraternal do que a de Harry e Hermione, mas a garota tem um papel fundamental no desfecho da trama.

Já o professor Atlas é o personagem que mais se aproxima de uma figura paterna para Hugo. Ele reúne a irresponsabilidade e instinto protetor de Hagrid com a sabedoria e o mistério de Dumbledore. Um Voldemort? Não há. O vilão de ‘Arma Escarlate’ é Caiçara, um dos traficantes do Dona Marta que tem uma ‘pendência’ especial com Hugo.

Sem querer revelar muitos detalhes da história, explico que Caiçara transmite todo o terror de uma pessoa normal com o poder de uma arma nas mãos. Ele chantageia, machuca, mata, sequestra e obriga Hugo a entrar em um caminho sem saída, no qual o protagonista acaba prejudicando muitas outras pessoas. Nesse momento, Hugo deve buscar sua bondade e decidir se ela significa colocar o bem geral acima do que é melhor para ele e seus amados.

O estilo de Ventura é direto, descritivo e empolgante como o de Rowling. Mas o maior mérito da autora foi saber usar as particularidades do Brasil para enriquecer sua trama, como a busca pelo ‘jeitinho’, o acordo fora das regras, a ‘queima de arquivo’. Questões que Hugo e todos os brasileiros enfrentam seja no mundo bruxo ou no real.

Resenhado por Sheila Vieira

549 páginas, Editora Novos Talentos, publicado em 2011.