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O que você disse, Hagrid?

Quem já teve a oportunidade de ler os livros de Harry Potter em inglês sabe que a fala de Rubeus Hagrid é, muito provavelmente, a mais difícil de entender. Rowling fez questão de demonstrar em sua escrita o sotaque do guardião de Hogwarts, partindo do princípio de que o modo de falar é algo muito importante na caracterização de um personagem.

No entanto, a tradutora Lia Wyler decidiu “limpar” a linguagem de Hagrid e causou uma certa polêmica por isso. Na nova coluna do Potterish, Bruna Moreno faz uma ótima análise sobre os motivos de Rowling e Wyler e a visão das autoras sobre a língua. Leia e comente!


Aqueles que acompanham minhas colunas sabem que eu gosto muito de pôr um toque de minha experiência pessoal logo no comecinho. Hoje eu gostaria de retornar justamente à minha primeiríssima coluna, “Harry Potter inglês ou brasileiro?”, de (quem diria!) três anos atrás. Se vocês não se lembram do que eu falo, bom, eu me lembro como se eu tivesse escrito, e vivido, tudo exatamente ontem.

Era 2003 e eu estava louquinha pelo quinto livro. Louquinha, louquinha, mas tão louquinha, que jurei a mim mesma que leria as quase 800 páginas em inglês mesmo, ponto final. Arranjei os quatro primeiros volumes na minha escola de inglês alguns meses antes e comecei a treinar. Na já mencionada coluna, eu contei parte da minha peripécia inglesa: como choveram palavras estranhas e nomes desconhecidos, como enfim descobri que Lia Wyler teve de fazer um trabalho e tanto na tradução. Porém, para todos os efeitos, tive de cortar parte do conteúdo que espremi em 6 páginas de Word (eu corria o risco do Nakajo me cortar para a vaga de colunista!) e, por isso, deixei de lado um dos maiores desafios que encarei ao ler a versão original: Hagrid.

Pois é, seis letrinhas que formam um enorme meio-gigante meio-bobão me deram muita dor de cabeça. E não, não foi por causa das milhares de criaturas mágicas bizarras que ele criava ou gostaria de criar; a culpa foi o sotaque, sutil nos filmes e grosseiramente grotesco nos livros.

Grosseiramente grotesco

Duvidam? Eis aqui então um exemplo da fala original do Hagrid em comparação com a fala brasileira (o trecho em questão foi retirado da página 378 da versão britânica da Ordem da Fênix e da 351 da versão brasileira, na parte em que ele conta o andamento de sua missão entre os gigantes para o trio):

‘Well, we waited till morning, didn’ want ter go sneakin’ up on ’em in the dark, fer our own safety’, said Hagrid.”Bout three in the mornin’ they fell asleep jus’ where they was sittin’. We didn’ dare sleep. Fer one thing, we wanted ter make sure none of ’em woke up an’ came up where we were, an’ fer another, the snorin’ was unbelievable. Caused an avalanche near mornin’.’

“— Bom, nós esperamos até o amanhecer, não queríamos nos aproximar no escuro, escondidos, para nossa própria segurança — disse Hagrid. — Lá pelas três horas da manhã, eles dormiram onde estavam sentados mesmo. Não tivemos coragem de dormir. Primeiro porque queríamos ter certeza de que nenhum deles ia acordar e subir onde estávamos, e segundo porque os roncos eram incríveis. Provocaram uma avalanche pouco antes do dia clarear.”

Se você não sabe lá muita coisa da língua, vou arriscar verter a fala do Hagrid para um “inglês culto”, o inglês que a gente aprende na escola, ou o inglês que eu poderia encontrar na fala de outro personagem, como Harry ou Hermione:

‘Well, we waited till morning, didn’t want to go sneaking up on them in the dark, for our own safety’, said Hagrid. ‘About three in the morning they fell asleep just where they were sitting. We didn’t dare to sleep. For one thing, we wanted to make sure none of them woke up and came up where we were, and for another, the snoring was unbelievable. Caused an avalanche near morning’.

Falem a verdade, a diferença entre os dois tipos de inglês é absurda! Além de originalmente Hagrid comer fonemas — “a” inicial, “t”s finais e os chatinhos “th”s —, ele distorce outros — “fer”? “ter”? Por que raios trocar o “o” por “e”? — e dá uma escorregadela na sintaxe — “they was sittin’” é um clássico como “nóis vai”.

Mas isso nem se vê em português — na realidade, na nossa língua o meio-gigante fala mais “corretamente” que muitos de nós, usando a flexão da primeira pessoa do plural (quem hoje em dia fala “nós” ao invés de “a gente”?) e lembrando até da regência dos verbos (certeza “de” que)! No Brasil, Rubeus Hagrid facilmente passa como intelectual, e certamente se sai melhor que muitos políticos!

Outro exemplo que me fez quebrar muito a cabeça com meu inglês iniciante da época foi o jeito que Rowling adotou para representar o sotaque, como na fala:

“‘Bout twenty feet,’, said Hagrid casually. ‘Some o’ the bigger ones mighta bin twenty-five.’
“— Uns seis metros — disse Hagrid com displicência. — Alguns dos maiores talvez tivessem uns sete metros.”

“Bin?”, eu pensava. “Mas ‘bin’ não era lata de lixo, teacher?”. Até eu me tocar que “bin” era “been” e perceber que focinho de porco não era tomada…

Algumas pessoas chamam essas questões de “erros imperdoáveis”; eu prefiro falar em “caracterização do personagem”. De um viés ou de outro, acredito que todos nós damos as mãos e torcemos o nariz durante a leitura (ou, como muitas vezes fiz, pulamos o trechinho e voltamos um pouco mais tarde), sem tentar encontrar uma explicação.

Explicação

Como eu disse, para mim Rowling caprichou na caracterização do personagem. Conforme trechos de entrevistas que encontrei aqui mesmo no Ish, a intenção da autora foi realmente construir Hagrid aos moldes dos camponeses do sudoeste da Grã-Bretanha, talvez para o lado de Chepstow, de onde definitivamente viria seu sotaque. Jo afirma que Hagrid e ela teriam a mesma origem, o que me faz pensar que eles deveriam falar do mesmo modo. Mas não falam. Hum. Está aí algo para se refletir.

Outro ponto interessante é pensar no significado do nome: segundo ela, Hagrid é “uma palavra de um dialeto – você teve uma noite ruim. Hagrid é um grande bebedor – ele tem várias noites ruins”. Para mim, faz todo o sentido ele falar de maneira toda truncada e arrastada: se Hagrid é um grande bebedor, ele pode (e deve) muito bem falar como um bêbado!

Poder-se-ia argumentar também que Hagrid fala assim devido a sua origem meio gigante. Ora, eu prefiro pensar que gigantes e meio-gigantes falam assim por causa de Hagrid — para mim está claro que Rowling imaginou Rubeus antes de qualquer outro da mesma linhagem. Então, pronto: primeiro o gigante bebedor camponês, depois toda a espécie.

Toda a espécie

Groupe, o meio-irmão do guarda-caça, é o perfeito exemplo de derivação. A começar pelo nome: tanto em português quando em inglês (Grawp), o som que encontramos é o de um resmungo, um grunhido (grawp, grawp, grawp). O motivo é auto-explicativo: tudo o que ele pode fazer é, infelizmente, grunhir.

Tenho medo de parecer um pouco dura ou preconceituosa nas minhas palavras. É fato que Grawp não é lá meu personagem preferido, porém também é fato que ele não fala nada de mais substancial na série. Na verdade, confesso ser até bonitinho o modo com que ele se refere ao irmão e à Hermione logo no final do quinto livro:

‘HERMY!’ roared Grawp. ‘WHERE HAGGER?’
“— HERMI! — rugiu Grope. — ONDE HAGGER?”

Grawp não consegue pronunciar as palavras, quanto mais formular uma sintaxe mais complexa. E existe uma coisa muito, mas muito interessante nisso tudo: como esse conjunto de “erros” constroi tão bem a imagem que temos da personagem. Rowling não precisaria descrever os trejeitos grosseiros de Grawp e talvez nem mesmo seu tamanho e sua descendência para que pudéssemos imaginar um gigante atrapalhado destruindo tudo a sua volta.

Mas e em português?

Em português

Grawp virou Groupe, uma saída bastante louvável e que se manteve refletida em suas falas. Isso, contudo, aconteceu somente n’A Ordem da Fênix; cinco livros antes, quando a senhora Wyler punha pela primeira vez as mãos em um Harry Potter, a escolha foi outra.

Em uma entrevista concedida ao site Omelete.com.br, a tradutora afirma ter tomado a decisão de não recriar o sotaque de Hagrid porque “os livros não foram traduzidos apenas para as classes mais abastadas que têm a possibilidade de freqüentar bons colégios, mas também para as crianças e jovens pobres que fazem filas nas bibliotecas para ler Harry Potter”. Pois é, meu caro leitor, Wyler se defendeu usando o argumento de “leitura para todos”, uma faca de dois gumes: se de um lado ela quis parecer boazinha e justa, convenhamos que, na verdade, ela só conseguiu soar como uma grande preconceituosa.

A impressão que tenho é que ela acredita que Hagrid “fala errado” e que, ao reproduzir isso num livro para crianças, aquelas que não têm acesso a uma escola de qualidade (leia-se, na concepção de Wyler: escola particular) poderiam, por ventura, começar a imitar numa forma de “escrita errada”.

Ora, mas por que Hagrid “fala errado”? Rowling estudou línguas, for God’s sake, e ela felizmente tem consciência de que os dialetos não somente refletem diferentes modos de expressão, como também marcam diferentes tribos, regiões, localidades, épocas, idades… O modo como falamos reflete quem somos!

Eu, Bruna, moro no interior paulista, mas minha família vem de São Paulo, capital. Minha fala é esse misto de “r” que puxa e que vibra, que não é daqui nem de lá; que é meu! Não é mais certo nem menos certo que o sotaque carioca, baiano, goiano, português; é só diferente!

Sob esta perspectiva, como Lia Wyler pode afirmar que Hagrid fala errado? Por que ele falaria mais ou menos certo que Dumbledore, que usa um léxico bem mais antigo e floreado que Rony, que usa muito mais gírias que Hermione? Cada um tem seu modo de falar, que lhe particulariza como personagem e constroi sua personalidade. Uma descrição não se baseia somente no físico: depende dos pequenos gestos escritos, as atitudes realizadas em detrimento de outras, a expressão de uma palavra de modo singular. Assim, mágico.

Mágico

Embora eu tenha suado às bicas para decifrar o que raios Hagrid tanto queria dizer, eu preferia que a tradução brasileira tivesse mantido seu sotaque complicado. Afinal, não fosse eu conhecê-lo, no sexto filme talvez eu nem tivesse rido da singela demonstração de afeto que ele deu a Harry no seu bolo de aniversário: “Happee Birthdae, Harry”.

Bruna Moreno será a tradutora dos próximos livros de J.K. Rowling.