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Dementadores no mundo trouxa

Quem tem medo de dementador? Ok, todo mundo. Criaturas que aterrorizam não só pela aparência, mas também pelo poder que têm sobre a mente e a alma das pessoas, os guardiães de Azkaban são uma personificação da depressão, como já disse a própria J.K. Rowling.

[meio-2]Porém, o que a nossa colunista Mariana Nascimento nos conta é quais são os dementadores que existem em nosso mundo real. Instrumentos de coerção e repressão que inibem a liberdade das pessoas e deixam a sociedade mais triste. Confira o texto aqui e dê as caras nos comentários!

Por Mariana Nascimento

Talvez não seja exagero dizer que os dementadores são as criaturas mais malignas de “Harry Potter”, tão malignos que representam o maior temor do grande herói da história. Como se sabe, essa malignidade se deve a seu poder de apagar a vida de um ser, sugando sua alma sem matá-lo. Mas esse é o grau máximo de maldade que eles podem atingir; em condições normais, a ação dos dementadores consiste em tirar gradativamente as energias de alguém. Nesse último caso, os efeitos são semelhantes aos da depressão, comparação já feita pela própria J.K. Rowling e que pode nos levar a diversas considerações.

Em primeiro lugar, para defender as energias vitais contra os dementadores, é preciso que a pessoa faça um grande esforço para recuperar as lembranças alegres, assim como alguém depressivo precisa se esforçar muito para ter os chamados pensamentos positivos. No entanto, em nenhuma das duas situações isso é suficiente. Contra os dementadores, é preciso não só pensar em momentos felizes, mas conjurar um patrono, ou seja, praticar magia, a ciência* dos bruxos; contra a depressão, é preciso recorrer a remédios, ou seja, à ciência dos trouxas.

Em segundo lugar, o fato de os patronos assumirem a forma de um animal que alude a uma pessoa querida também aponta para o problema da depressão e, de modo mais amplo, para a questão da consciência. A ligação do patrono com alguém querido é simples: para alguém depressivo ou que esteja passando por qualquer tipo de sofrimento, ter pessoas bem quistas por perto é fundamental. Assim, o patrono exterioriza a necessidade de companhia e afeto que é agravada em circunstâncias difíceis.

Quanto à forma de animal dos patronos, é possível relacioná-la à irracionalidade dos bichos. É como se a parte consciente do ser humano fosse frágil demais para enfrentar uma situação tão adversa; como se só restasse recorrer ao lado mais primitivo, mais próximo da natureza, para recuperar as energias vitais. Assim, quando Sirius assume a forma de cão em Azkaban, ele se torna mais forte, como se estivesse abrigado nas profundezas da sua irracionalidade (ou de seu inconsciente), uma parte mais difícil de ser alcançada seja pelos dementadores, seja pelo próprio homem.

A fragilidade da consciência, aliás, é abordada não só por meio dos dementadores, mas também por meio da maldição Imperius, com a qual um bruxo domina a vontade de outro ser, que deve se empenhar ao máximo para manter-se dono de si. Em relação à capacidade de resistência contra a maldição, menciona-se a força do caráter. Assim, provando a força de seu (bom) caráter, ou seja, provando que sabe quem é, Harry consegue manter a consciência ao ser atingido pela Imperius. E o fato de ele ser uma Horcrux e ainda assim permanecer firme serve para mostrar o quanto Harry é forte.

Por fim, há a polêmica entre os bruxos sobre o uso de dementadores em Azkaban. Comentada muito brevemente ao longo da série, a rejeição ao emprego de dementadores como guardas pode ir além da justificativa de que eles são seres das trevas, indignos de confiança para vigiar criminosos. Mais do que o paradoxo bastante familiar que é incumbir seres suspeitos de prestar serviços públicos, o que parece incomodar alguns bruxos é a condição dos criminosos em Azkaban.

O encarceramento é a suspensão da liberdade física de uma pessoa que tenha usado essa mesma liberdade para cometer algum crime. Quando os dementadores são os guardas, contudo, a mente do prisioneiro é invadida e ele perde não só a liberdade física, mas também a liberdade de pensamento, que de partida já é afetada pelas condições materiais de um presídio típico. O pensamento do prisioneiro passa a ser direcionado pelo poder dos dementadores, não sobrando ao indivíduo sequer o refúgio da mente.

Desse modo, empregar dementadores em Azkaban significa negar qualquer liberdade aos prisioneiros, qualquer direito de domínio sobre o próprio corpo e sobre a própria mente. E ao entender isso, o leitor de “Harry Potter” é levado a pensar se bruxos das trevas merecem tal tratamento, o que equivale a pensar na validade da tortura e da pena de morte presentes no mundo trouxa.

* Ciência enquanto “soma dos conhecimentos práticos que servem a determinado fim” (dicionário Michalis).

Mariana Nascimento carrega chocolate na bolsa, caso um dementador apareça.