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Harry Potter e o vírus da leitura

Que Harry Potter foi aclamado pelo público infanto-juvenil do mundo inteiro estamos fartos de saber. Qual é o papel da saga, porém, além do entretenimento incomparável e da formação de fãs dedicados e fiéis? O que ela fez por aqueles que não costumavam se entregar à magia de ler um bom livro e fazer parte de um mundo inventado? A explicação vem dessa coluna de Isadora Cecatto, que discute o trabalho de J.K. Rowling na formação de novos leitores e a quem cabe a responsabilidade de continuar este incrível trabalho. Leia a coluna completa clicando aqui e não se esqueça de comentar!

Por Isadora Cecatto

Anos de dedicação a uma realidade julgada fantasiosa e infrutífera por muitos. Meses incontáveis de espera por um pedacinho a mais da história, da vida das personagens, do mundo mágico que se tornava, aos poucos, o universo do próprio leitor. Harry Potter marcou vidas, delineou infâncias e introduziu aprendizado em pequenas e grandes mentes. Para alguns, em especial, fez um pouco mais.

A paixão por ler e escrever, como bem sabemos, não é uma constante no nosso país. Independente de classe social ou quaisquer fatores providos de estatísticas esclarecedoras, o hábito de trocar a televisão pelos livros e a caneta pelo Orkut abrange a porção majoritária de nossas crianças e jovens, os quais sequer são cobrados quanto a isso. Passamos a representar, pouco a pouco, uma sociedade de pensamentos automatizados e senso crítico pouco desenvolvido. Em suma, não só no Brasil como em todo o mundo, de certa forma, os prazeres e benefícios da leitura tornaram-se parte da rotina de poucos.

Algumas obras, no entanto, vieram para contribuir na luta contra a perda dos valores da boa literatura. Surgiram diversos tipos de “iscas”, espécies de “ímãs” com fórmulas infalíveis de atração, seja buscando simples lucro, seja no intuito de criar novos leitores ou mesmo sem objetivo específico algum que não o de dar vazão à paixão pela escrita e ao desejo de compartilhar idéias. Romantizando um pouco, alguns deles fizeram verdadeiros milagres.

Não é novidade pra ninguém Harry Potter ter iniciado a vida literária de crianças de diferentes nacionalidades. Tirando os fanáticos religiosos e as mães antiquadas, inevitáveis causadores de uma polêmica desnecessária e exagerada, a saga de J.K. Rowling foi aclamada não sempre pela crítica formal, mas com certeza constantemente pelos pais e educadores conscientes. Desesperados por uma juventude mais intelectualizada e articulada, para esses adultos o mundo Potter representou, assim que lançado, não só uma realidade com mais sonhos para suas crianças, como também a porta de entrada delas para um universo o qual julgavam essencial e esquecido: o da leitura e da escrita.

O computador, o vídeo-game, a televisão. Os meios de alienação a que são expostos os jovens de hoje constituem, para eles, fonte única na tarefa de saciar suas necessidades e lazer. A informação chega pronta – não há imaginação, construção ou introspecção. Enquanto o livro, ferramenta quase que exclusiva de mundo alternativo na época de seus avós, permite ao usuário delinear à mão-livre a fantasia em questão, os joguinhos de vida própria e os desenhos em terceira dimensão só fazem limitar. Surge então a preocupação: como ganhar uma disputa injusta como essa, onde os adversários dispõem, além do marketing forte, das ferramentas certas pra chamar a atenção de toda uma população infanto-juvenil?

Rowling, por ou sem querer, bateu recordes ao responder essa pergunta. Em sua tentativa de melhorar de vida através da palavra, seu único recurso, deu ao mundo um presente de alcances incalculáveis. Misturando mitologia por entre um enredo agradável, fez de suas personagens verdadeiros convites à leitura de sua jornada. A autora não precisou de linguagem rebuscada ou conteúdo de difícil compreensão e acesso: deu às crianças o respeito que buscavam ao demonstrar confiança em sua capacidade intuitiva e interpretativa. Falou de temas censurados à infância sem, no entanto, usar de um sensacionalismo traumatizante, além de ter disseminado sentimentos e valores antes pisoteados, com uma facilidade desigual.

O sétimo livro foi lançado e a espera por continuação teve seu temido fim. As crianças de Pedra Filosofal tornaram-se os adolescentes ou adultos de Relíquias da Morte, num crescimento proporcional aos de Harry, Ron e Hermione. Sem mais história, sem mais livros para os que passaram a apreciar literatura a partir da existência de Harry Potter. Fica no ar, inevitável, a dúvida preocupante acerca da continuidade do trabalho iniciado por Joanne. Irão os fãs do mundo mágico encontrar outras obras de seu interesse? O hábito da leitura sobreviverá à tristeza e saudade de ver chegado o fim?

A resposta é um esperançoso sim. Como andar de bicicleta – exemplo piegas, mas válido -, adentrar o universo literário é um caminho sem volta, labirinto o qual não se desaprende assim. Uma vez parte dos prazeres proporcionados pela palavra, o leitor passa a ter um bom livro como droga de vício irreparável, com direito a crises de abstinência fortes e quantidades significativas de adrenalina durante o uso de uma dose de alto nível, como Harry Potter foi para tantos. E espalhado o vírus da leitura, é conseqüência obrigatória a epidemia da escrita – maior prova é o sucesso de sites como Floreios e Borrões, onde milhares de nunca antes escritores tornam-se amantes da arte de contar histórias e articular-se em verbos e capítulos. Harry Potter foi o começo da boa ação mundial, creditado à nossa J.K. Terminada sua parte, a continuidade desse trabalho fica à mercê de outros escritores, e talvez poucos tenham a habilidade de nosso ídolo ao tentar fisgar a massa mais desinteressada. A iniciação dada por Potter, no entanto, faz toda diferença: a responsabilidade de manter-se lendo é cabível como nunca aos novos leitores que a série criou. E sigamos lendo!

Isadora Cecatto já teve overdose de Harry Potter e se orgulha disso.