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A pedagogia de Hogwarts

A pedagogia de HogwartsA pedagogia de Hogwarts
Professores picaretas e sádicos de um lado; professores que dialogam e que aprendem do outro.
Sheila Vieira submete os professores de Hogwarts, esta escola a que todos querem ir, a uma lúdica avaliação baseada nas categorias da filosofia de aprendizado de Paulo Freire. A coluna completa, em que Sibila Trelawney recebe um “Trasgo” e McGonnagal e Lupin, um “Ótimo”, você lê na extensão.


por Sheila Vieira

Confesse, amigo pottermaníaco. Tenha você estudado em um dos melhores colégios do país ou nas famigeradas escolas públicas tupiniquins, não teve uma qualidade de ensino de “padrão internacional”.

Professores injustos e sem critérios, direções intransigentes, métodos de avaliação duvidosos: todos convivemos com isso nas educações infantil, fundamental, média e superior. Quando lemos os livros de Harry Potter, imaginamos como seria estudar na Escola de Magia e Bruxaria de Hogwarts, não somente para usar varinhas, mas também porque a escola nos parece séria em termos de avaliação, capacitação dos professores (à exceção de Lockhart) e foi bem dirigida ao longo de sua história. Claro que nunca teremos aulas de Defesa Contra as Artes das Trevas, tampouco centauros no corpo docente, mas será que é possível que alguma unidade de ensino cá entre nós tivesse uma pedagogia parecida com a de Hogwarts? Para responder a essa pergunta, vamos recorrer ao nome brasileiro mais lido e venerado em nossas faculdades de Pedagogia, Paulo Freire, e a alguns de seus seguidores, submetendo os professores e as disciplinas de Harry a uma avaliação que pretende ser um pouco mais justa do que a feita por Dolores Umbridge em ODF.

EXISTE UMA ESCOLA IDEAL?
Antes de tudo, devemos pensar em nosso ideal de escola. Qual seria a postura dos diretores, dos professores e dos alunos? Os pedagogos de tendência construtivista, como Paulo Freire, acreditam que o ensino deve se preocupar com o estímulo das diversas habilidades dos alunos, inclusive as morais. O caráter classificatório e autoritário de algumas avaliações tem uma finalidade meramente “sentenciva”, e não leva em conta a evolução do estudante e a superação de seus obstáculos. Curiosamente, a maioria dos professores afirma que tem dificuldade para determinar notas, pois criam afeto por seus alunos à medida que os conhecem. Para Freire, a avaliação não deve se basear em um julgamento de resultados, mas sim em uma reflexão sobre toda a relação professor-aluno.

Neste caso, o professor não pode se limitar a pensar na experiência do aluno, mas também na sua. O educador deve estar sempre disposto a aprender com seus pupilos, estimulá-los para que consigam construir raciocínios por conta própria. É importante também reconhecer quando o estudante chega a conclusões diversas das que o professor esperava, por caminhos igualmente surpreendentes. Caso este conclua que há incoerência, arrogância ou falta de conhecimento do aluno, deve explicar calma e educadamente onde está o “erro” de pensamento. O que vemos na maioria das salas de aula, no entanto, são professores que desacreditam os estudantes, argumentando que estes não têm base para dizer coisa alguma. Ora, para isso que eles estão na escola, para adquirir essa base! Os pedagogos construtivistas defendem que a última característica de um educador pode ser o autoritarismo.

Outro erro de método dos professores seria a atribuição de notas a partir de uma comparação entre os alunos, quando deveriam considerar o status do aluno em relação ao que é considerado aprendizagem. Desta maneira, o melhor modo de avaliar seria a determinação de conceitos, abrangendo um grupo em um “nível” de conhecimento, ao invés de procurar mínimos detalhes para diferenciar décimos de nota. O que estimula essas práticas é o fato de que os professores não fazem questão de conhecer a fundo seus alunos. Não procuram conversar com eles, tampouco se mostram dispostos a ouvir sugestões e angústias dos estudantes, além de, muitas vezes, não terem consciência do quanto cada palavra ou gesto pode marcar a vida de um aluno. Essa falta de consideração é o motivo pelo qual os educadores propõem um modelo de curso pré-definido e não aceitam o seu questionamento.

O que resume o pensamento da pedagogia construtivista é a idéia de que ensinar não é somente treinar, mas sim desenvolver nos alunos a capacidade de produzir conhecimento de forma autônoma.

E O QUE HOGWARTS TEM A VER COM ISSO?
Claro que Ravenclaw, Gryffyndor, Slyhterin e Huffle-Puff não tinham um exemplar de “Pedagogia da Autonomia”, o livro de Freire, em casa. E mesmo se estivéssemos falando de uma escola real, aplicar teorias baseadas no ensino brasileiro em uma escola britânica não é algo que faz muito sentido. Mas não custa nada pensar como Paulo Freire avaliaria a Escola de Magia e Bruxaria comandada por Dumbledore.

Muito provavelmente, ele criticaria bastante o professor Binns, de História da Magia, que faz de sua aula um monólogo, totalmente desconexo com a realidade dos alunos. Sibila Trelawney (Adivinhação) tampouco escaparia. A “vidente” desdenha completamente da opinião de seus educandos, e não busca em nenhum momento aprimorar o seu saber, ou fazer uma auto-avaliação. Horácio Slughorn (Poções) não é respeitável, pois somente valoriza os aprendizes que tem algum tipo de afinidade com ele ou algo a oferecer. Já Gilderoy Lockhart não precisa de nenhum pedagogo para ser tachado de picareta, com sua vaidade que ganha da dos participantes do Big Brother. Se conhecesse Severo Snape, Freire provavelmente o chamaria para uma conversa. Afinal, competência o inimigo de Tiago Potter tem de sobra. Porém, usa de extrema crueldade com certos alunos, com ou sem razões de ordem pessoal, sendo que nem o mau desempenho escolar justifica algum desrespeito. Dolores Umbridge é um assunto à parte, que veremos melhor depois.

Há algum membro do corpo docente de Hogwarts que merece os cumprimentos dos construtivistas? Minerva McGonagall, sem dúvida. A mestra de Transfiguração está sempre em contato com seus alunos, participando de seus dilemas morais e aconselhando-os. No entanto, o professor mais louvável seria Remo Lupin (Defesa Contra as Artes das Trevas), que, em sua primeira aula, faz um exercício (bicho-papão) em que a auto-estima dos estudantes é reforçada, levando-os a conhecer melhor os outros e a si mesmos. Hagrid não seria muito elogiado, mas respeitado, pois mantém um importante diálogo com os alunos, além da disposição de se aprimorar.

Enfim, olhando o corpo docente de Hogwarts e deixando de lado os professores coadjuvantes, vemos que os picaretas também são maioria no mundo da magia.

AS DISCIPLINAS E AVALIAÇÕES
O currículo de Hogwarts propõe que os estudantes dominem alguns fundamentos da bruxaria, visando o enfrentamento de questões de importância moral e ética na vida adulta. Feitiços, Transfiguração, Poções, Herbologia, História da Magia, Astronomia e outras têm um caráter informativo parecido com as matérias que nós tivemos na escola. Porém, Defesa Contra as Artes das Trevas é realmente uma disciplina especial, pois determina toda uma proposta educacional, a começar pelo nome, que julga as Artes das Trevas como algo que não deve ser estimulado ou praticado, ao contrário do que ocorre em Durmstrang, por exemplo. Não é à toa que Rowling escolheu essa disciplina para dar local ao principal professor de cada livro.

No que diz respeito às avaliações, Hogwarts também está aprovada. Ao invés de investir nas notas de zero a dez, ainda predominantes no Brasil, aplica seis conceitos mais amplos aos alunos, após provas escritas e práticas: Ótimo, Excede Expectativas, Aceitável, Péssimo, Deplorável e Trasgo. É importante também que, antes do N.I.E.M (do último ano), os alunos fazem uma grande série de provas no quinto ano, os N.O.M.s, em que já podem descobrir suas preferências e ter um diagnóstico de seus pontos fracos, com a chance de dois anos para melhorá-los.

UMBRIDGE E A.D.
Dolores é sem dúvida uma das maiores vilãs da série Harry Potter, não somente por suas inclinações para a tortura, mas também pelo fato de ser a encarnação de um tipo de ensino ultrapassado, em que predominam a pura apreensão de teoria, sem relação com os dilemas do “mundo lá fora”. Ela o fazia por ordens do Ministério, que queria frear idéias destoantes dos alunos. Ou seja, através de Umbridge, Rowling faz uma severa crítica ao ensino não-autônomo, caracterizando-o como expressão de um grupo de poder que não deseja formar cidadãos capazes de fazer valer seus direitos.

A Armada de Dumbledore, então, é a prova de que Hogwarts é uma escola de características construtivistas, pois, quando foram expostos a uma repressão ideológica, os estudantes organizaram uma disciplina paralela, com aulas que simulavam conflitos com que eles se deparavam todos os dias, valorizando a prática. Hermione, Harry, Rony e seus colegas só foram capazes de realizar esse “empreendimento” exatamente porque tiveram anteriormente professores como Minerva e Lupin, além da persona de Dumbledore acima de tudo.

ROWLING LEU PAULO FREIRE?
A resposta da pergunta acima, esta colunista não pode oferecer. Mas o pedagogo nos ajudou a botar os mestres da magia no papel dos alunos, sob um “julgamento”. Agora, faça o mesmo exercício com os professores da sua vida escolar. Houve algum picareta maior que Lockhart? E, acima de tudo, você concorda com a perspectiva construtivista de educação?

A pedagogia de Hogwarts
REFERÊNCIAS
Jussara Hoffman: Avaliação – Mito e Desafio – Uma Perspectiva Construtivista
Paulo Freire: Pedagogia da Autonomia
Paulo Roberto Padilha: Planejamento Dialógico
Sírio Possenti: Por que (não) Ensinar Gramática na Escola

A pedagogia de Hogwarts
Sheila Vieira recebeu “Ótimo” em Defesa Contra a Arte da Enrolação.