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Você-Sabe-O-Quê

Você-Sabe-O-QuêVocê-Sabe-O-Quê
O nome de (fazendo figa) Voldemort (tremor suave) é o ponto de partida do ensaio de Bruna Moreno (bate na madeira)
A mística e o pavor em torno do nome de Voldie nos é explicado pelo conceito de tabu lingüístico. Bruna também faz uma divertida compilação das expressões sem pé nem cabeça que são usadas para evitar o nome maldito…
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por Bruna Moreno

Temido por muitos, idolatrado por poucos, enfrentado por três. É lógico que vocês sabem de quem eu estou falando! Um menino órfão, mestiço, boa fama em Hogwarts, um gatinho. Aquele lá, o tal do herdeiro de Slytherin, o cara que repartiu a alma em sete partes, sabe? Não? Aquele que matou Lily e James Potter, lembra? Tentou matar o menino Harry e se deu mal? O Lorde das Trevas, Você-Sabe-Quem, Aquele-Que-Não-Deve-Ser-Nomeado, o… você não vai me forçar a dizer o nome dele, vai? É Vol… é V-Vol…

Chame-o de Voldemort, teria dito Dumbledore. Sempre chame as coisas pelo nome que têm. O medo de um nome aumenta o medo da coisa em si (“Pedra Filosofal”, página 254, versão brasileira de 2000, com muito orgulho!). Harry Potter aprendeu com ele muitíssimo bem -ou, melhor dizendo, teve de reaprender com ele muitíssimo bem. Lembro que logo em seu primeiro contato com o mundo bruxo, com o gigante Hagrid, Harry já foi alertado a entrar em pânico ao simples mencionar do nome -que nunca tinha ouvido na vida, aliás. Teve de começar a evitar o uso da palavra por pura obrigação social, para impedir que pessoas ao seu redor tivessem chiliques e ataques histéricos, como se somente um pronunciar fosse capaz de criar a desgraça, ou trazer o próprio “desgraçador” de volta à vida. Patético. O medo geral, contudo, não foi capaz de infectá-lo: todos nós sabemos, é claro, que Harry nunca realmente teve de medo de falar “Voldemort” abertamente, como muito bem pudemos atestar até o fim da série.

Interessante notar que este comportamento não se mantém somente dentro da ficção: não são raras as pessoas que se assustam, ficam bravas, fazem sinal da cruz, dão toques na madeira ou acionam qualquer dispositivo crendice-popular ao ouvirem uma palavra ou expressão proibida — ao ouvirem tabus lingüísticos, para já entrar em termos mais técnicos.

Tabu é o ato proibido, principalmente ligado a coisas sagradas. Tabu lingüístico, então, é a palavra proibida e mal-vista por uma determinada sociedade, logicamente também em uma determinada época (porque a língua é uma constante renovação). Mansur Guérios (1) afirma que existem dois tipos de tabus lingüísticos: o próprio, de crença (em que se atribui força sobrenatural à palavra em questão), e o impróprio, de sentimento (referente às expressões chulas e grosseiras ou à veneração direcionada a algum ser). O resultado de expressar um tabu abertamente, Harry já sentiu na pele: arrepios alheios e feitiços no nariz. Acontece que às vezes se deixa escapar, se esquece; outras vezes, mais difíceis, nosso repertório vocabular simplesmente parece vago demais para que possamos proteger o próprio nariz.

Nesses casos, usa-se um substituto da palavra, um recurso indireto: um sinônimo mais aceitável, uma expressão mais genérica, um gesto no ar, aquela tosse disfarçada, uma palavra emprestada de outra língua. Faz-se uso também de recursos estilísticos em “ismos” e “ísticos”, como o eufemismo (expressão substituta menos pesada e mais “esquiva”), o hipocorístico (expressão de louvor) e o disfemismo (expressão agravante). No mais, simplesmente evita-se falar através da elipse (omissão) e da circunlocução (evitação).

Vocês, leitores, já sabiam de tudo isso, é claro. Talvez não em detalhes; mas certamente a palavra “tabu” saltava desta página virtual em direção a seus olhos com muita distinção -isto devido àquela passagem do último livro, à maldição (the Taboo curse) feita por Comensais da Morte sobre o nome de seu mestre, a qual imediatamente os chamava assim que a palavra proibida fosse mencionada. Quase o mesmo dispositivo lingüístico, exatamente o mesmo espiritual. O pronunciar desencadeava o caos, literalmente.

Agora, para dar seguimento a esta coluna, gostaria de analisar os substitutos da série -afinal, “Harry Potter” é cheio deles, todos muito interessantes.

Você-Sabe-O-Quê
VOCÊ-SABE-QUEM
“Pra quê falar o nome se eu posso evitar de falar?”, eu já até posso imaginar um Ron de orelhas vermelhas gaguejando com esta frase. A expressão “Você-Sabe-Quem” é simples, pura e perfeita. É o que usa a menina da oitava série que quer contar sobre seu paquera à amiga e quer evitar sofrer a fofoca: isto é a circunlocução, a fuga do uso do tabu através de uma expressão genérica, porém reconhecível pelo contexto.

Se fosse possível analisar a evolução desta palavra na sociedade bruxa (e para isso teria que se ter registros passados e, ironicamente, reais), muito provavelmente se chegaria à conclusão de que “Você-Sabe-Quem” acabou por perder, com o passar do tempo, seu estatuto de mera substituição para passar a ser realmente o nome referente à pessoa. No cenário, por exemplo, da menina que vai cochichar com a amiga, o diálogo seria da seguinte forma:

__ Ai, Vivi, eu vi Você-Sabe-Quem ontem!

Mas se fôssemos analisar o que Ron diria a Harry, a sentença seria levemente diferente (sem contar, é claro e ainda bem, o tom de euforia e excitação):

__ Harry, eu vi o Você-Sabe-Quem ontem!

Certamente que ambas as expressões se referem a uma pessoa específica e reconhecível pelos contextos, porém a presença do artigo definido no segundo caso marca a expressão realmente como nome, e não como simples substituto.

Você-Sabe-O-Quê
AQUELE-QUE-NÃO-DEVE-SER-NOMEADO
Aqui, a nomeação da palavra negada se dá pela afirmação da negação da nomeação -e esse nó que eu dei na sua cabeça ainda vai receber a pontinha de outro laço para que eu possa nomear toda essa “nomeação”: eufemismo.

Imaginem, por exemplo, a situação: depois da batalha final em Hogwarts, no sétimo livro, um aluno mal informado se aproxima de Hermione para lhe perguntar o que, afinal, tinha acontecido a Voldemort. Ela, muitíssimo educada, não hesita em responder:

— Foi derrotado para sempre.

A senhorita Granger poderia ter usado outros variantes, ainda — “bateu as botas” ou “foi comer capim pela raiz” —, ou simplesmente ter sido grossa e gritado “Ele morreu, levou um Avada Kedavra no meio da testa, não viu?!”. Esse jeitinho mais educado de se dizer alguma coisa mais indelicada ou grosseira é o eufemismo.

Referir-se a algo pela afirmação de sua negação é negá-lo indiretamente, da mesma forma polida.

De maneira semelhante, existem regiões do interior do Brasil que denominam o saci-pererê, o negrinho malfeitor de uma perna só, de “o-da-carapuça-vermelha” — agora, não por qualquer negação, mas por um título que trata o nomeado de forma genérica por um pronome: “o-da-carapaçuça…”, “aquele-que-não-deve…”.

Você-Sabe-O-Quê
LORDE DAS TREVAS
Este substituto é usado principalmente por Comensais da Morte (ou por espiões-duplos, como no caso de Snape) quase como um apelido -quero dizer, um apelido somente para aqueles que realmente o consideram como um amigo íntimo, como fazem Bellatrix e… hum, como faz Bellatrix, porque eu (particularmente, sou forçada a dizer, mas acho que não estou muito distante da realidade da Jo) acredito que o resto o veja somente como uma pessoa má e poderosa de quem eles tiveram sorte de ter a companhia.

“Lorde das Trevas”, então, para a senhora Lestrange, é um hipocorístico no sentido de transformar a expressão em um nome respeitoso, quase (para ela, evidentemente) carinhoso. Chamá-lo através desta expressão é elevar ao máximo o status dele e, deste modo, preservar sua confiança.

Pettigrew, contudo, nos dá um belíssimo exemplo de hipocorístico de louvor: ao enaltecer seu senhor, Peter tem a única intenção de preservar sua própria integridade, mostrando um respeito que, muito inversamente, se reduz a (e apenas se mostra como) um pavor enorme. Esta é uma tentativa de transformar o inimigo em amigo com caráter somente oral e psicológico. Algo semelhante ocorre na Rússia, por exemplo: um substituto hipocorístico para “demônio” no país é a expressão (não?) equivalente “o justo”.

Você-Sabe-O-Quê
Estes três substitutos são todos referentes a um único nome, vocês-sabem-qual, nem preciso dizer (não por medo, agora, mas por elipse). Eu, contudo, vou mais além – acredito que este tabu lingüístico seja, ao mesmo tempo, o substituto de outro tabu, que engana uma inconsciente população bruxa e é somente claro a duas pessoas.

Vejamos, então.

LORDE VOLDEMORT
[…] Entendeu? Era um nome que eu já estava usando em Hogwarts, só para os meus amigos mais íntimos, é claro. Você acha que eu ia usar o nome nojento do meu pai trouxa para sempre? Eu, em cujas veias corre o sangue do próprio Salazar Slytherin, pelo lado de minha mãe? Eu, conservar o nome de um trouxa sujo e comum, que me abandonou mesmo antes de eu nascer, só porque descobriu que minha mãe era bruxa? Não, Harry, criei para mim um nome novo, um nome que eu sabia que os bruxos de todo o mundo um dia teriam medo de pronunciar, quando eu me tornasse o maior bruxo do mundo. (página 264 da “Câmara dos Segredos” [vulgo “Câmara Secreta”], edição brasileira também de 2000).

Neste episódio passado no esconderijo do basilisco de Slytherin, a jovem memória de Tom Riddle admitiu com todas as letras: Lorde Voldemort não existe. Lorde Voldemort é uma invenção criada para amedrontar bruxos (e, por que não?, trouxas). Lorde Voldemort é a vergonha do real. Lorde Voldemort é a utopia de um homem ambicioso e sedento por poder.

Agora, não posso deixar de recorrer às palavras do bom velhinho (não o Papai Noel): Sempre chame as coisas pelo nome que têm. O medo de um nome aumenta o medo da coisa em si.

O nome daquele menino órfão que mencionei no começo desta coluna não é, de forma alguma, Lorde Voldemort -é Tom Marvolo Riddle. O medo fundamentado neste “auto-apelido” criado é absurdo e controverso, a partir do momento em que reafirma o poderio mágico que Riddle exalta em si mesmo, e aceita a existência de sua (tão querida) imortalidade. Ele, contudo, nunca deixou de ser a mesma criança rancorosa, metida e, acima de tudo, mortal, que sempre fora.

Dumbledore jamais se submeteu à imagem utópica de um Lorde das Trevas; muito pelo contrário, aliás, chamou-o pelo nome de batismo sempre que teve o desprazer de encontrá-lo. E Harry, posteriormente, seguiu seus passos: na batalha final em Hogwarts, tratou-o como Tom até o fim; foi capaz de desmascará-lo e arrancar-lhe o véu que escondia de todos -e de si mesmo- suas fraquezas. Assim, pois, foi capaz de derrotá-lo.

“Lorde Voldemort” é substituto de “Tom Riddle” por claro disfemismo, onde a expressão usada agrava o tabu (exagera a realidade, dá o poder que não existe). Guérios atenta que, neste caso, o emprego da palavra disfêmica chega a ser até mesmo manifestação de coragem ? exatamente como é vista a atitude de Dumbledore e Potter, os dois “corajosos-que-nunca-tiveram-receio-de-pronunciar-Vol-de-mort”.

“Tom Riddle”, então, é o verdadeiro tabu lingüístico para os dois bruxos que tiveram a oportunidade de combatê-lo. E devemos ter medo dele, mesmo?

Acredito que seu eu pertencesse à sociedade mágica (de verdade, e não somente de coração), preferiria me referir a ele com seu nome original. Logicamente teria medo dele –logicamente teria medo de qualquer um mais forte do que eu (mesmo que apenas acreditasse nisso), dentro de um mundo em que um simples abanar de varinhas é capaz de matar (ou pior)-, mas retomar sua natureza mestiça é torná-lo mais concreto e “derrotável”, mortal como cada um de nós.

E, além do mais, o nome “Tom Riddle” é muito, muito mais bonitinho que “Voldemort”. Argh.

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NOTAS
(1) O livro de Guérios que usei para complementar esta coluna foi, nada mais, nada menos do que “Tabus Lingüísticos”. Título óbvio com leitura bastante agradável. Recomendo até para quem não tem muita pretensão em seguir carreira lingüística.

Certamente minhas explicações a respeito do tema, retiradas do livro, foram bem mais sucintas e incompletas, sendo necessária uma leitura e um estudo mais profundos para que o assunto seja devidamente contemplado.

Você-Sabe-O-Quê
Bruna Moreno é um nome a se considerar -além de ser colunista Ish, claro.