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O Senhor das Horcruxes

Voldemort e Sauron, o senhor dos Anéis, são aproximados, comparados e medidos nesta análise de Luis Nakajo, nosso colunista. Além disso, ao fim deste texto, o autor expõe sua teoria sobre a “cena da clareira”, que deixou tantos leitores intrigados com o simbolismo de King’s Cross.

O texto completo, que você pode comentar, pode ser acessado por aqui.

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O Senhor das Horcruxes

“Os rumores que ouviu são verdadeiros: ele realmente ressurgiu; deixou seus domínios na Floresta das Trevas e voltou à sua antiga fortaleza na Torre Escura de Mordor”

Por Luis Nakajo

Depois de uma temporada na floresta, o espírito de Sauron toma novamente forma –e busca, com toda a sua malícia, o Um Anel, em que investiu grande parte de seu poder. Com ele em mãos, recuperará a força anterior, e todos os outros Anéis cairão sob seu controle –encontrados, reunidos, aprisionados nas trevas. Sem o Anel destruído, morto ele não pode ser. História familiar, esta.

Assim como Voldemort, Sauron se torna imune à morte por meio de um objeto em que injeta um pouco de si; quando derrotado, “vive” naquele tênue espaço entre a existência e o nada. Diferentemente de Sauron, porém, Voldemort não precisa usar uma Horcruxe para ter seus poderes na potência máxima: ele até se esquece delas –e certamente não agoniza quando uma delas é jogada nas lavas de um vulcão.

GOLLUM E GINA

Uma Horcruxe pode “possuir” uma pessoa. Pouco a pouco, em contato muito íntimo, ela domina a mente de seu hóspede a ponto de uma nova personalidade se manifestar e dominar a psique. Quando Gina Weasley começa a desabafar seus segredos ao diário de Riddle, uma relação profunda de vulnerabilidade e dependência se estabelece com a temida Horcruxe. O diário é seu amigo, talvez seu melhor amigo –um dos poucos seres com quem a jovem pode ser sincera e não receber como resposta uma risada sarcástica ou um olhar de reprovação. Dessa dependência, o diário se aproveita para se infiltrar na garota, manipulá-la.

Mais sutil é a ação do Um Anel. A vítima mais célebre –e vencedora de um Oscar de efeitos visuais- é Sméagol. Por mais de 500 anos, o Anel o “consumiu”, de acordo com Galadriel. Dando a vida longa, o Anel impõe como tributo uma dependência doentia e ciumenta. E, como bem mostram os filmes de Peter Jackson, cria uma personalidade-Gollum, um ser daninho, que domina o pobre Sméagol e o sujeita a assassinatos, safadezas e ardis para ter o seu “preciosso” bem pertinho.

As Horcruxes não têm todo o appeal que o Um Anel tem. As pessoas não se esbofeteiam pelo diário de Riddle, nem pela cobrinha Nagini. Mas reparem: o que Voldemort escolhe como Horcruxes, preferencialmente, são objetos raros, que exercem fascínio, que são, numa palavra, preciosos –que, como a diadema de Corvinal, geram disputas, mortes e rancores.

O ESPECTRO UMBRIDGE

A finalidade de uma Horcruxe é proteger uma parte da alma de seu beneficiário. Usá-lo como um adorno no pescoço não parece ser uma estratégia inteligente: melhor guardá-la numa caverna, mergulhado numa poção mortífera, colocada numa bacia localizada no meio de um lago coalhado de Inferi homicidas. Quando, porém, a Horcruxe cai em mãos erradas… O paspalho Mundungo Flecther e a querida Dolores Umbridge que o digam!

O primeiro, assim que pôde, vende a Horcruxe como uma bugiganga qualquer. Desejo de uns trocados. A segunda adquire um certo camafeu de um camelô e acha a jóia tão linda, tão… preciosa, que a coloca em volta do pescoço sem maiores delongas. Não que seja preciso muito esforço da Horcruxe para que Umbridge saia disparando Avada Kevadras em plena rua –o irônico do caso é que o efeito é quase nulo numa pessoa tão sádica quanto ela.

Na verdade, a Horcruxe atrai Dolores Umbridge –como o Um Anel atrai os Espectros do Anel. Como atrai as personagens que estão nas redondezas. O que para Umbridge é desejo de realeza (o camafeu, diz ela, é uma relíquia de família…), para Boromir é desejo de poder, mesmo que seja poder para salvar Gondor da guerra contra o mesmo Sauron, o senhor dos anéis.

MAGIA É PODER

A armadilha do Um Anel é esta: ele não é controlável como pensam os pobres mortais. É arma sedutora, cujo controle se perde com facilidade. Para Tolkien, diz Isaac Asimov (sim! o da ficção científica!), o Anel representava a sedução da máquina, a tecnologia utilizada exaustivamente, assumindo o lugar dos homens na produção. Tolkien acreditava que o mundo dos homens poderia se desenvolver sem o uso maciço dos recursos naturais (que pode ser visto no desmatamento de Isengard), e o Anel representa esta tentação de poder ilimitado promovido pelo império técnico-maquinal.

As Horcruxes não fazem isto, claro. Ou fazem?

A espada de Grifinória custou a cabeça e o suor de muitos anões. Representa a superioridade dos bruxos sobre as outras “raças” do mundo mágico. É símbolo de poder –um poder que não é o industrial, mas o da primazia da magia –também representada pela exclusividade dos bruxos com relação à varinha. Elfos domésticos que a usam são presos imediatamente. Como o poder da máquina, o poder dos bruxos se desvirtuou, assumiu uma forma discriminatória, levada ao extremo pelo personalista Voldemort e seu “Magia é poder” (Magic is might).

A magia, utilizada tortuosamente, gera este governo fascista no Ministério.

A máquina, diabolizada por Tolkien, é ruim de qualquer maneira. Usada para o bem ou para o mal, para a riqueza de poucos ou para a pretensa distribuição comunitária da Rússia socialista.

Tolkien se sente inseguro ante este novo mundo industrial. Seu mundo é o pré-industrial, que a máquina vem destruir com sua variedade e quantidade de produtos. Tolkien prega contra este novo mundo porque acha que ele é pior que o seu.

Isaac Asimov contesta em Tolkien exatamente esta cegueira. Considerar que a vida pré-industrial era melhor que a no mundo da máquina é, no mínimo, simplista. Tolkien não sentia na pele o que era o sofrimento de seu mundo. Ele pertencia à classe privilegiada. Este mundo é movido pelo “trabalho incessante de servos, camponeses e escravos, cujas vidas eram uma longa brutalidade”, nas palavras de Asimov.

É Saruman quem diz “A new power is rising. Its victory is at hand” (1). “Um novo poder se levanta. A vitória dele se aproxima” (2). Este poder é a máquina, as indústrias, os cortiços, os famintos nas ruas, a sujeira, tudo o que vem substituir a pobreza e a fome rural -mais escondidas, mais discretas, que melhor caracterizava a Inglaterra que Tolkien representa meio vesgamente através dos hobbits gorduchinhos e bonançosos.

RESISTIR É MORRER

Saruman tenta seduzir Gandalf: é sábio se aliar a este poder e tirar proveito da situação –negá-lo é coisa de gente fraca, como diria Voldemort. Gandalf retruca, antes de se atirar do pináculo de Isengard, que “há apenas um senhor dos anéis –e ele não divide seu poder” (3).

O ponto é que as Horcruxes funcionam no mesmo esquema. Quando Rony se vê seduzido pela Horcruxe-camafeu –seduzido pelo que ela diz e não pelo poder que ela oferece-, temos uma cena parecida com aquela em que Samwise Gamgee tem de entregar o Anel para o Sr. Frodo, de livre e espontânea vontade, antes de entrarem em Mordor. A tentação de ficar com o Anel –e cobrir o mundo com jardins- e a tentação de ter uma explicação fácil para os problemas sentimentais entre os três amigos (Harry e Hermione se amam, te acham ridículo, riem às suas costas, etc) é grande, mas, no fim, como era de se esperar, vence a virtude dos coadjuvantes.

DESTRUIÇÃO

O Um Anel só pode ser destruído onde foi forjado: na lava de Mount Doom. Faz parte da circularidade que sua figura personifica. Destruí-lo é destruir Sauron. E, ademais, esta destruição é feita não por quem esperávamos, mas pelo mesmo Gollum que nos afligia com seus ésses sibilantes.

As Horcruxes precisam estar “além de consertos mágicos” para que deixem de ser aquilo que são. Quando a Horcruxe é um ser vivo –por exemplos, uma cobra e um garoto de olhos verdes-, é “só” matá-los. Estamos carecas de saber que magia não pode ressuscitar os mortos.

E aqui eu entro num tópico meio controverso, que abordei de maneira meio marginal no último ensaio, “O Leitor-Modelo de Harry Potter”. Naquele ensaio, disse que a cena da clareira, em que Voldemort mata Harry, é parecida com a do sacrifício seguido de ressurreição, frame configurado pela Bíblia. Pois bem, acho que Harry não morreu no sentido ortodoxo da expressão. Não é um novo Cristo, que morreu e, 72 horas depois, ressuscitou.

Ele certamente levou uma rajada de Avada Kedavra –e isso detonou a parte de Voldemort que estava dentro de Harry. Assim, ele deixou de ser uma Horcruxe. Mas a cena de King’s Cross é onírica demais para o meu gosto. Seria mais uma metáfora do que uma situação presencial, concreta para as personagens. Isso é raríssimo em Harry Potter. Acho melhor, porém, não levar a cena ao pé da letra.

A criatura que se remexe na estação, embrulhada em trapos, é a parte de Voldemort que foi pelos ares com o feitiço. Mas uma “alma inteira”, a de Harry, mestre das relíquias da morte, pode “voltar” para este mundinho sujo. Por quê? Arrisco dizer que é porque, ao se entregar à morte, Harry demonstrou que a dominava –no sentido do terceiro irmão do conto de Beetle. Além disso, a varinha que lhe dispara o feitiço mortífero é, na verdade, sua por direito. Duvido que esta varinha mate seu mestre –vocês sabem de toda a tradição por trás da Varinha de Dumbledore: aquela coisa é fiel até a última fibra ao seu mestre.

Assim, acho que Harry não foi morto –esteve apenas desacordado pelo impacto do feitiço e –também pelo “exorcismo” que Avada Kedavra acabou por operar. Detalhe que sustenta minha teoria: Voldemort também levou um tombo e ficou desacordado: parte do feitiço deve tê-lo atingido. A varinha operou sozinha um jeito de não matar Harry, desviando parte do feitiço para Voldemort –e não matou nenhum dos dois, porque cada um recebeu metade do coice.

Na cena final, no Salão Principal, Harry usa um feitiço contra Avada Kedavra –e o efeito é mais dramático, por envolver resistência: agora Harry ajuda a sua varinha (nas mãos de Voldemort) a não matá-lo. Ele, Harry, não se machuca, enquanto que Voldie vai pelos ares. Once and for all.

NOTAS

(1) The Lord of The Rings, HarperColins, página 253. O Christopher Lee, nos filmes da New Line, simplesmente me arranca lágrimas quando fala estas duas frases. Ó, cena maravilhosa!

(2) O Senhor dos Anéis, Martins Fontes, página 269.

(3) Eu até me arrepio ao lembrar do Ian McKellen declamando “there is only one lord of the rings –and he does not share power”, daquele jeito todo teatro-shakesperiano. Logo após, ele se joga do pináculo e uma portentosa águia gigantesca, Gwaihir, se não estou enganado, o resgata das garras sujas de Saruman, que completa a cena com um lindo “then you’ve chosen death”.

Luis Nakajo tentou escrever sobre Horcruxes e o Um Anel –e acabou expondo uma teoria que não lhe sai da cabeça desde que releu Deathly Hallows. Como ele concluiu este texto em 6 de março, seu aniversário –e como as aulas na ECA começaram sem dó nem piedade, ele espera que os leitores sejam mais complacentes ao crucificá-lo por mais um coluna que dá preguiça de ler –se bem que bem menor que as anteriores.