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Harry Potter não é supernova

Primeiro de tudo, a Equipe de Colunistas do Potterish deseja a todos que nos acompanharam durante o último ano um Feliz 2008, cheio de realizações e boas idéias. E que vocês continuem conosco e nunca deixem a magia de Harry Potter morrer!

Nosso colunista, Luis Nakajo, continua nossa área de Crônicas com uma recente tese acadêmica que criou o conceito de Potter-Objeto como ponto de partida para relações sociais e simbólicas estudadas por diversas áreas do conhecimento. A tese concorda com Sibila Trelawney, pois afirma que Harry é um péssimo Vidente, mas um excelente Objeto.

Descubra o que esta tese tem de mais interessante e como três mulheres pensam Harry Potter, num espaço em que a cicatriz é vista de esguelha.

Você pode conferir a coluna completa aqui.

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Harry Potter não é supernova
Mas é o astro em torno do qual giram uma tese de livre-docência, um debate instigante e ansiedades quanto à segunda maternidade

Por Luis Nakajo

I. HAVAIANAS E FLORENTINOS
Ainda em 2005, nem um pouco paramentada, calçando os chinelinhos Havaiana, com o moleton e o rabo de cavalo, Silvia Borelli ria, apesar da tensão. Ria das interpretações ideológicas que a série Harry Potter despertava e que ela agora lia, via internet. Apologia da escola privada? Garoto propaganda do capitalismo? Herói da geração de Seattle? Só restava rir, ante a fraqueza dos argumentos. Foram esses risos que não apenas a animaram em suas tardes de bode, como a levaram a concluir a pesquisa dum objeto visto de esguelha pelos membros da Academia.
Mas aquilo começara de maneira especial. Bem especial. Harry Potter lhe caiu no colo e lhe surpreendeu o suficiente no decorrer daqueles oito anos de convivência. Durante a internação do pai, Silvia pediu emprestado, sob a tensão que prenunciava morte, um livro para ler sem pensar, sem maiores exigências. Sua sobrinha lhe emprestou o bom e velho exemplar da Pedra Filosofal. Ela não tinha muitas expectativas, mas o livrinho lhe surpreendeu: lançou-lhe um feitiço. Não só gostou dele, como passou a seguir a série de perto. A sobrinha foi sua ponte de contato.

Posteriormente, em Florença, aonde foi para um simpósio, a surpresa que levou de Potter foi das fortes! Qual criança que lhe surpreendesse com um Patrono, a cena a que assistiu valia por muitos e muitos choques. Ela não pensara que o lançamento de um livro poderia reunir tantas pessoas nas ruas… Tirar dos eixos uma cidade como Florença, saturada de Michelangelos por todo lado, era uma marca do fenômeno não só editorial, como também sócio-cultural. O menino crescera e começava a arrasar corações. Italianos e italianinhas, vestidos de bruxos, formando, um após o outro, aquelas filonas que iam dar (seria isso possível?) em livrarias simplesmente lotadas pela juvenilidade local. Tudo por causa do quarto livro da série… Aquilo era bem mais curioso do que se poderia pensar… Um fenômeno que valia ser estudado… Florença foi uma fagulha.

De volta ao Brasil e aos chinelinhos, Silvia fez um estafante levantamento das editoras que publicavam o produto Harry Potter e seu perfil de mercado, os métodos de divulgação, exposição em livrarias, os projetos educacionais que envolviam os livros, a recepção da crítica, a classificação em rankings, as histórias bizarras de vazamento de livro, as relações entre Rowling e os diretores das adaptações cinematográficas; trouxe conceitos de Bahktin, Maturana, Benjamin, Adorno, Bourdieu, Eco, Calvino, Morin, Calligaris, Kehl, Propp… Analisou a narrativa de cada um dos então seis livros –e criou, de quebra, um método para leitura iconográfica das capas inglesas e americanas. Em 2006, o trabalho resultante das tardes, dias e noites insones que precedem a conclusão de uma pesquisa, Silvia ficou de frente para a banca que lhe concederia (ou não) a livre-docência em Ciências Sociais, na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.

Para quem já pesquisara produtos ditos de massa por um longo período, a defesa não envolveu ansiedades extras. Silvia acumulou mais um êxito. Telenovelas, coleção Vagalume e vários tópicos da cultura urbana passaram a dividir espaço, no currículo, com seu Harry Potter, bem recebido pela Academia. A tese, atualmente em preparo para publicação, é apresentada, por enquanto, em seminários, simpósios e debates a que Silvia é convidada e em que convive com uma platéia que faz uma tietagem, digamos assim, contida. Assim… meio coisa de aprendiz de feiticeiro.

II. UM SEMESTRE HOR-RÍ-VEL!
Ele ficou sabendo da tal “livre-docente em Harry Potter” quando sua professora de linguagem, Rosana Soares, lhe falou de um membro da banca –uma tal de Silvia- que julgara seu mestrado na ECA. Rafael Kato, jornalista wannabe, se interessou pela tal tese. Após algumas conversas de corredor, telefonemas e e-mails, conseguiu realizar seu intento: um debate em que Silvia dividiria a mesa com Rosana e outra professora de linguagem, Mayra Gomes. Detalhe: o debate ocorreria na própria USP, um espaço em que Harry Potter definitivamente é visto de esguelha e onde esse olhar de esguelha se estende àqueles que lêem a série.

Mas Kato vinha de uma geração diferente. Em sua turma, Réri Póter era tema freqüente de discussões que beiravam o acalorado –principalmente em filas de 20s de julho nas Livrarias Cultura da vida. Mas não só. Com vários professores –dentre os quais, Mayra e Rosana eram proeminentes-, Harry Potter caía na ordem do dia e virava estudo de caso –fosse das funções de Propp, fosse de colocações freudianas ou do caráter fechado/aberto do texto.
Marcado para as 17:30 de uma quarta-feira de fins de novembro, o debate foi divulgado em pôsteres feitos na segunda e xerocados coloridamente na terça, na biblioteca da própria ECA. O auditório, porém, tinha em torno de 25 presentes quando Silvia chegou frenética, em seu passo cadenciado, mexendo muito a cabeça, balançando o cabelinho loiro, se desculpando, em seu sotaque campineiro, pelos oitenta minutos de trânsito enlouquecido que a atrapalharam no trajeto até a Cidade Universitária. Os membros da organização, que envolveu as duas empresas juniores do Departamento de Jornalismo e Editoração e que teve de expulsar delicadamente o professor que ocupava o auditório para além do tempo estipulado, representava metade de público.

Tatiane Klein, que acompanhava a irmã mais nova, se vira para o lado e aborda o repórter. “Você tem garantias de que esse debate não tem spoilers?” –e, apontando para a irmã, explica- “ela não pode com spoilers e ainda não leu o livro!”. Rafael Kato, sentado na primeira fila do auditório, com sua cópia de Deathly Hallows em mãos (edição britânica adulta) diz que não há garantias quaisquer. Mayra Gomes, que trocava sua fiel garrafinha de Coca Cola pela de água à sua frente, na mesa vetusta e pesadona, de tampo escuro, elimina o pouco de dúvida sobre o assunto: “Vocês leram o livro, não?”, disse, se dirigindo ao público. Seus olhos varrem o recinto, com um quê de divertida surpresa ao se deparar com a negativa de Tatiane.
“Não faz sentido vir a este debate sem ter lido o livro!”, continua, enquanto Tatiane se despede e guia a irmã para fora do auditório. Mas ela não podia fazer concessões, isso não! Abordar o fim da série era inevitável! Mayra sofrera o semestre inteiro. Lera (e a-ma-ra!) o sétimo livro e o utilizaria em sua aula sobre as funções de Propp, não fosse (onde já se viu?) obrigada a evitar referências ao livro –seus alunos ainda não o tinham lido, se rebelaram. “Como foi hor-rí-vel a minha vida esse semestre!”, ela se lamenta, com suas sílabas sempre bem e dramaticamente escandidas. “Hoje eu vou contar tu-do!”.

Se não contou tudo, pelo menos Mayra conseguiu aliviar sua tensão. Revelou o destino de Harry e –para horror de Rosana e Silvia- o fim de Snape. Algumas pessoas se contorceram na platéia. Uma das bixetes de Jornalismo ficou com os olhos cheios de lágrima quando o tópico enterro-de-Dobby foi abordado por uma aluna de Letras. Amanda Demétrio girava o que parecia ser uma rodinha de patins na ponta da lapiseira (pra desestressar); Rafael Kato olhava o relógio com freqüência, pelo canto do olho –ele tinha prova de política na FFLCH às 19:30. Isso é o que dava organizar debates… E, enquanto isso, Silvia, Mayra e Rosana falavam de Réri Póter como acadêmicas e –sim!- como leitoras amantes da série.

III. TRÊS DEBÉIS-MENTAIS
De acordo com Harold Bloom, a mesa da ECA contava com três débeis-mentais, ou “leitoras regredidas”, adultas que lêem livros classificados como infanto-juvenis, em torno dos quais há o estigma da não-literatura. Guerreiro canônico, no termo que Silvia usa para os defensores de uma literatura de cunho elitista, Bloom deve ter ficado com a orelha bem quente naquela quarta-feira. Várias de suas críticas foram postas em xeque pelas debatedoras. “150 milhões de leitores estão errados? Ele diz que sim. Acha que só ele está certo”, “Quem aqui leu o livro dele para crianças inteligentes?” e “Tem é dor de cotovelo” foram algumas das colocações das três.
A posição de que Harry Potter é uma supernova, que surgiu, vendeu zilhares de exemplares num curto espaço de tempo e depois vai regredir às trevas da ignorância foi também encarada com ceticismo pelas três. Ao olharem em suas bolas de cristal, todas concordaram que Harry Potter tem muitos anos pela frente. Mayra fala dos livros de Monteiro Lobato como exemplo – afinal de contas, alguns deles, como “Emília no país da Gramática”, foram reescritos e relançados recentemente, com as regras da língua portuguesa atualizadas. Não que ela queira ler essas novas edições –ela passa longe delas. Mas não há como negar que isso permite que as crianças de hoje possam ler essas obras, décadas depois de criadas. Harry Potter sobreviveria assim, acredita Mayra: sendo reapropriado pelas gerações futuras, sendo uma espécie de… de… palim-pse-sto! É essa a palavra! –texto escrito em cima de texto.

Silvia lembra do sucesso de vários produtos brasileiros que tiveram sucesso fora do Brasil –como sua “Malu Mulher” na China. Harry Potter é bem-sucedido exatamente porque suas personagens são altamente inglesas, como muito se disse, mas a narrativa lida com matrizes universais. Como “Malu Mulher”, também pesquisada por ela.

Mayra fala do floo powder –“Isso só tem sentido em lugares com la-rei-ra! No Brasil, nós não temos isso”. A estrutura de Hogwarts é inglesa de cabo a rabo –e tudo isso é apropriado por leitores do mundo todo –com naturalidade, ainda por cima. Essa foi uma das maiores surpresas de Mayra. “Nós ficaríamos felizes de votar em alguém com a integridade do Harry Potter”, arremata ela. Ele encara a morte de mãos abaixadas, diferentemente dos heróis de antanho, que morriam na peleja. Um herói, diz Mayra, morre por uma tarefa, um ideal, por alguém. Vence a condição fundante que é o medo da morte. É mais do que humano. Já Voldemort… este teve uma vida burlando a morte, isso sim.

Mayra admite, na mesa, que se identifica com Luna Lovegood de vez em quando. A platéia solta risos contidos. Enquanto Silvinha solta uma exclamação de surpresa alegre, quase a ponto de abraçá-la, Mayra completa, gutural: “O problema é que eu não gosto disso”. Tendemos a nos identificar com personagens que não tenham problemas de hesitação e deslocamento social, como Luna e Rony, disse ela. Quanto a Hermione… Mayra não poupa tonalidades de voz para exaltá-la – “Ela é obsessiva, perfeita e dedicada… e ín-te-gra, não abandona ja-mais”, diz com os olhos, por um golpe de luz, úmidos.

Ela leu Harry Potter pela primeira vez também por obra de sobrinho (“isso é sintoma de quem não tem neto”, completa com humor). Em um momento altamente Luna Lovegood, no interior de São Paulo, com a família, ela procurou alguma coisa para fazer e acabou com a Pedra Filosofal nas mãos. Leu a Câmara Secreta em seguida. Leu duas ou três vezes os seis livros da série. O sétimo livro, que ela penou o semestre inteiro para debater? Muito bem amarrado, muito bem con-ca-te-na-do… “Passarei anos na universidade e não vou escrever nada assim”.

IV. AI, OS SOBRINHOS E NETOS E SOBRINHOS-NETOS…
Silvinha atualmente faz campanha por netos. Mayra disse ao repórter que (aha!) quando não há netos, há uma poderosa arma: os sobrinhos-netos. Alguns instantes depois, ela percebe que não tem sobrinhos-netos. Rosana faz beicinho e diz que ainda nem filhos tem. A grande questão em torno dos netos e sobrinhos-netos é a tal longevidade de Harry Potter –sua reapropriação.
Mas uma apropriação –a de Hollywood- já está em marcha desde 2001. Rosana falou exatamente dessas adaptações dos filmes. Ela começou a ler os livros da série por pura curiosidade: como uma mulher consegue tanto sucesso, sendo professora e dependendo da previdência social, escreve um livro que vende milhões e acaba por comprar um castelo na Escócia? A primeira metade da Pedra Filosofal foi lida com este intuito de leitura das formas de Rowling. Da metade em diante, Rosana não queria mais saber de análise –estava é interessada no desenrolar das personagens.

Quando vai para as telonas, porém, Harry Potter não é novidade. Muitos e muitos livros se tornaram filme antes; muitos e muitos filmes serão adaptados a partir de livros no futuro. Aliás, é muito difícil um roteiro ser original, conclui ela. A gente só percebe que ele o é quando vemos as indicações ao Oscar. Ademais, vê que os últimos filmes são cada vez menos literais –até por conta do aumento da complexidade e do volume dos livros-, o que torna o filme realmente completo quando visto por quem já lera os livros antes. Os últimos livros, além do mais, são cada vez menos imagéticos –e complicados na adaptação.

Os livros ainda têm o primeiro lugar em relação aos filmes. Os livros, na verdade, deram vigor às bilheterias. Por lidar com efeitos especiais mais ostensivamente, o quinto filme é o que mais desagrada o público –porque os livros, percebe Rosana, são ligados a elementos mais arcaicos (pena, pergaminho), em contraposição a que o PlayStation de Duda Dursley é citado brevemente para ser lançado pela janela.

V. A MORTE E O LIVRO SETE
Terminara de ler o livro. “Meu Deus, como ela conseguiu isso?”. Rosana ficou felicíssima quando viu as três páginas extras de epílogo. Foi, ela concluiu depois, uma atitude de humildade da parte da escritora –ela se pôs no lugar do fan fiction writer, quase. Fez uma homenagem a todas as pessoas a quem ela, inclusive, dedicara o livro. Transformou todas as páginas anteriores em fábula.

“Ela foi muito boa”, diz Mayra para a platéia, agora minguada por conta do horário –as aulas do período noturno na ECA já começaram. Silvinha achou as páginas de uma caretice ímpar, mas, depois de lê-las, viu que elas marcavam o pós-rito-de-passagem de Harry: ele conquistara uma vidinha comum depois de tanta aventura.

No fundo, e nisso todas as presentes concordam, Harry Potter é uma história sobre a morte e como lidar com ela. Mais do que um artifício de marketing (quem vai morrer no próximo livro?), é o backbone de toda a septologia. Quem vence o medo da morte a ponto de se entregar de braços abaixados a ela, perde, pouco a pouco seus protetores. Pais, Sirius, Dumbledore…Harry era ainda criança no sentido heróico. Precisava de protetores. No momento final, porém, era ele sozinho, com seus guts.

E aí Mayra causa escândalo ao lembrar de um último protetor, esquecido como sempre –que morreu encarando os olhos de Harry –os olhos que eram como os olhos de sua mãe… Ao ver a reação, Mayra abre um sorriso e solta, resplandecente: “Snape mor-reu”.

Mayra [Rodrigues] Gomes é expert em análise do discurso e livre-docente pela ECA-USP.
Rosana [de Lima] Soares trabalha com a linguagem audiovisual. As duas compõem o núcleo de linguagem do curso de Jornalismo da ECA-USP.
Silvia [Simões] Borelli, é livre-docente pela PUC-SP com uma certa tese, de 2006, entitulada “Harry Potter: campo literário e mercado, livros e matrizes culturais”.

Luis Nakajo é estudante da ECA-USP.

Todos os nomes por ele citados neste texto se referem, sim, senhores, a seres que existem em carne e osso e que, espero, não vão me processar pela audácia de recriá-los semi-ficcionalmente neste espaço.